As cócegas podem fazer rir, mas também podem irritar muita gente.

"Seja bem-vindo quem vier por bem!" e "se à porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa com a gente!"

Recomendação Sonora

Friday, 14 March 2008

Pre(to)conceito

Ela cresceu num bairro não melhor que eu ou que tu. Fez o infantário na escolinha do bairro, aonde os pais a iam levar de manhã e buscar à tardinha. Sempre lhe fizeram a lancheira, até ela querer ser ela própria a fazê-la, para escolher o que podia pôr lá dentro. Como todas as crianças que não percebem que fazem parte daquilo que as pessoas altas com voz grossa chamam de classe alta, mesmo após a fazer a lancheira, os pais iam conferir, para ver se aquilo que ela tinha escolhido podia ser usado para o lanche. Havia um dia da semana em que ela podia escolher uma coisa especial, uma coisa qualquer que ela quisesse, e esse era o dia de ouro.

Todas as crianças tinham um dia especial. Quase todas. Havia crianças cujos pais, ou pessoas com quem viviam, pouco se importavam com o que os filhos comiam naquele momento de comunhão que é logo antes à hora do recreio. E é nesses momentos que um animal de metro começa a crescer, cada vez mais alto, e a ficar cada vez menos selvagem, menos originalmente humano, mas cada vez mais grande, mais impenetrável.

As crianças mais alertas, mais observadoras, geralmente reparavam nessas crianças que se sentavam para comer sempre o mesmo, todas as tardes, enjoadas do sabor que têm de engolir porque "senão, não cresces". As mais bem ensinadas, não se davam com essas crianças, porque elas são sempre as que ficam no castigo e que nunca fazem os trabalhos de casa. Depois há crianças que intuitivamente percebem que há algo de injusto com essas crianças, algo que não devia acontecer. Ela sentia assim. E um dia sentou-se ao lado dos meninos maus de cor diferente e partilhou o lanche. Fez isso uma vez, naquela semana, no dia do lanche especial. Voltou a fazer na semana seguinte e na seguinte. Até os pais descobrirem, através da mulher de bata de quem ninguém gostava, e lhe tirarem o dia especial. Mas ela continuou a sentar-se ao lado deles, todos os dias, à mesma hora, até as mesas ficarem pequenas e eles já não caberem na mesa aonde costumavam lanchar.

Ao andar na rua, viu uma pessoa com olhar de revolta, que vinha na sua direcção. Ela ficou com medo e pensou logo em atravessar a rua, para o outro passeio. Mas isso seria parvoíce, porque todas as pessoas têm direito a andar na rua, nos passeios, circular por este Mundo que nos pertence. Então continuou no seu passeio, com um sorriso confiante e alegre por saber que ainda pensa diferente, pois a maioria que teria atravessado a estrada.

De joelhos no chão, com lágrimas na cara, mas parada, paralisada. Sem carteira, sem dinheiro, nem documentos. Sem tudo aquilo que dizem que lhe é essencial. Sem nada, só com a roupa do corpo, menos os brincos, a pulseira, o relógio, e os sapatos que levava. De joelhos no chão, com lágrimas na cara, mas parada, paralisada. O vento que soprava as nuvens do céu para novas paisagens às formigas que andam na Terra e que fazem tanto reboliço entre elas - elas, que são todas iguais, apesar da cor, elas que são todas formigas. E o polícia que lhe perguntava se o conhecia, se já o tinha visto antes, como é que o poderia descrever. De joelhos no chão, com lágrimas já secas na cara, paralisada de medo, medo do conhecido, deixou sair um vento estranho que vinha desde os pulmões fracos, passando pela traqueia, dançando nas cordas vocais, batendo no céu da boca e que saiu baixinho e pequenino em forma de:

Ele era preto.