Este é provavelmente um dos poucos textos que vou escrever sem segundas interpretações, baseado na minha vida tal como ela é.
Acabei de chegar do trabalho. Saí mais cedo, pelas 21:10, do restaurante. A primeira coisa que reparo é ao olhar para o céu e ver a lua em plena luz do dia. As regras sempre foram daquelas coisas que eu nunca percebi. Afinal de contas é possível serem para lá das 21:00, ainda haver Sol e ao mesmo tempo haver lua.
Hoje quero falar-vos de um grande companheiro que tenho lá no restaurante: o Pawel. O Pawel é polaco e trabalha na cozinha há dois meses. Eu trabalhei na cozinha durante dois meses, mas por causa dos estudos demiti-me e três mais tarde voltei a ser admitido, mas como empregado de balcão/mesa. Sou provavelmente a única pessoa naquele sítio que já fez de tudo ali dentro. Não é algo de que me orgulhe muita, mas decerto é um dos motivos pelos quais eu consigo dar-me bem com todos os empregados. Não me dou com os meus superiores, mas isso é outra história. Muito resumidamente, o Pawel veio da Polónia para substituir a Basia, que mudou de restaurante. Nessa altura, trabalhavam três na cozinha: o Hubert, o Pawel e o chefe da cozinha, Emil. O Emil chegou e subiu logo ao posto de chefe, pois veio ao mesmo tempo que o seu amigo Pawel, mas para substituir o namorado da Basia, quem me ensinou tudo o que sei de cozinha profissional, Damien. Sai Damien e Basia, entra Emil e Pawel. Já se conheciam todos da Polónia, cresceram e estudaram juntos e vieram parar a Inglaterra para prosperar financeiramente. O Hubert manteve-se no seu posto, sendo o terceiro elemento.
Neste movimento de rotação de cozinheiros, o Hubert recebeu a generosa proposta de receber mais duas libras por hora noutro restaurante, a fazer precisamente o mesmo e com a promessa de ainda vir a ser mais aumentado. O Hubert não hesitou e saiu do restaurante num Domingo há um mês e na Segunda-feira seguinte estava no restaurante da concorrência. Ninguém culpa o Hubert, porque neste mundo de luta, quem está parado leva um tiro. Ele fez o que todos fariam e agarrou a oportunidade. Veja-se que o meu restaurante só tem um empregado inglês, que é estudante, e todos os outros incluindo gerente e o sub-gerente são estrangeiros. Por isso há uma certa empatia com este tipo de situações, que acontece com muita frequência. O Hubert foi em paz.
Nisto, ficaram os dois amigos - Emil e Pawel - a trabalhar na cozinha. Já moravam juntos, no mesmo quarto - um no sofá, outro na cama - porque é mais barato e trabalhando juntos, mais ligados e dependentes um do outro ficaram. A semana passada vendi a televisão do meu senhorio por 25 libras, porque eles tinham uma Playstation e queriam jogar e não podiam. Como o meu senhorio é uma pessoa que gosta de enganar os inquilinos, perdeu um bem material, ainda que sem saber. O Pawel e o Emil ficaram todos contentes, pois já podiam jogar lá no seu quartinho.
A Mariom - uma empregada de mesa - perguntou-me hoje quase a chorar "porquê?". Eu achei a resposta óbvia. Vê-se mesmo que ninguém sabe como é trabalhar na cozinha. É muito fácil enviar pedidos e mais pedidos e na reunião falar mal da cozinha, que são lentos, apesar de saber que são só dois num restaurante com mais de 70 cadeiras. Ela disse que sabia que o Pawel tinha a mãe doente, mas que nunca chegou a falar nada mais aprofundadamente com ele, porque o inglês dele é praticamente nulo.
Para mim, quase que sem reacção, consigo em fracções de segundo racionalizar a situação e responder aos "porquês" de todos, que muito admirados ficam. O Pawel devia ter começado a trabalhar às 18:00 e estava mais de uma hora atrasado. É Sábado, o dia mais ocupado da semana no restaurante e a presença dele é indispensável. O sub-gerente disse logo que agora tinham comprado uma Playstation e que o Pawel deve ter-se deixado em casa a jogar. Mandaram a senhora que lava a louça, outra Polaca, a Ana, ir lá a casa e chamar o Pawel.
O Pawel enforcou-se.
Ela veio a chorar, o amigo e companheiro dele, Emil, vou a correr para a casa largando tudo o que estava a fazer, com os olhos lacrimados. Choque entre os empregados de restaurante, os poucos clientes que lá estavam nunca chegaram a saber o que realmente se passou. Os clientes seguintes ficaram a saber que estavamos com problemas de ordem técnica na cozinha e que não iamos mais servir refeições hoje. Os que fizeram reserva foram contactados por telefone e ouviram a mesma explicação.
Tivémos de ir fechar a cozinha, limpar tudo. Como já tinha trabalhado lá, pediram-me para orientar lá as limpezas. Ao limpar, voltou a surgir-me a ideia de que as regras não servem para nada, que eu não devia estar ali, que eu não estaria ali se não fosse por dinheiro. Que hoje morreu um amigo meu no segundo acto. E o terceiro? E as regras da Academia?
Continua toda a gente a perguntar "porquê". Perguntam muitas vezes. Acham surreal a história da Ana bater à porta e estar fechada e trancada, mas que pela frecha conseguiu ver um homem a dançar no ar. Não se sabe há quantas horas ele esteve lá, só se sabe que ele ontem estava bem.
Eu continuo a achar que a razão dos seus problemas continua em papel. Não num papel que ele deixou escrito, mas no horário de trabalho, onde ele está indicado para 83 horas semanais.
Escolheu um bom dia para se matar, um Sábado, um dia de grande lucro para a companhia. Conseguiu descansar, ter folga, ainda por mais num Sábado, num fim-de-semana - quem dera a muitos. Conseguiu libertar-se para sempre da matéria que o prendia - abdicou da sua família e dinheiro: o papel.
Infelizmente continuam todos a perguntar "porquê" e não vêem o seu acto heróico, mas têm pena dele...
Saí mais cedo do restaurante e olhei para o céu. O céu azul abraçava a lua, ainda de dia. Nunca percebi bem estas coisas das regras, mas cá vou andando.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
6 comments:
fodasse.
interromper o estudo para fazer visita diária aos diarios alheios, deixou-me hoje com um soco no estomago.
estás a aprender mais no II acto do que muitos.
Lamento...
Li o seu comentário no blog tanagra (muito certo, aliás) e vim tentar descobrir o seu...e penso que é raro ler algo assim tão sério, como m. escreveu em cima, como um soco no estomago.
Vou continuar a ler.
Espero que no teu caso algumas regras se mantenham, como conseguir ver o sol e a lua todos os dias. Lamento pelo teu amigo, sinceramente. Um abraço.
(Boquiaberto)
talvez, porque sim
Post a Comment