Ela sentou-se para desenhar. Agarrou no lápis e apontou para o papel. Antes de começar a fazer o rasto com o carvão na folha branca, virgem e sem vincos, pensou no que ia desenhar. Ela queria desenhar uma emoção, mas não sabia o qual. Lembrou-se de desenhar a frustração de não saber o que desenhar, começar por desenhar isso e levá-la a um nível mais avançado de riscos, talvez trouxesse-lhe a imagem daquilo que procurava. Como muita gente, ela procurava em si descobrir algo de novo, sem ter de ver outros desenhos, ou outras pinturas.
Só que ela nunca tinha desenhado na vida.
Pousou o lápis e parou para pensar porque é que não sabia desenhar e as outras pessoas sim. Porque é que era diferente, no que é que era diferente e como mudar isso. Viu que tinha dedicado mais tempo a fazer coisas que mais ninguém se interessa, coisas que não são pagas para ser feitas. Ela passava as tardes todas a fazer coisas do género, diferentes tipos de plantas, como a relva cresce diferente em cada jardim do bairro, como os pássaros têm sons diferentes, como uns voam mais altos do que outros, como o céu nem sempre é azul. Ela tinha dedicado a vida toda a fazer coisas que ninguém aprovava e que eram consideradas uma tonteirice de criança. Ela já era adulta, mas ainda vivia com os pais, solteira, sem filhos, virgem. Talvez por continuar a agir como uma criança.
Ela conheceu uma amiga que desenhava muito bem, que era um enorme talento, uma verdadeira artista. A amiga tinha desistido de desenhar, estava triste e revoltada. Ela quis saber porquê e a amiga explicou-lhe que tinha passado a maior parte da vida a fazer coisas como pintar árvores, flores, as mudanças do céu, os pássaros a voar. Mas que conhecia gente que só desenhava coisas escuras, mas que usavam cores brilhantes. A amiga que desenhava muito bem disse-lhe que essas pessoas estavam constantemente felizes, porque todos gostavam delas. Toda a gente dizia que eles desenhavam muito bem, e nunca se lembraram da amiga que desenhava muito bem. Diziam-lhe que ela não sabia desenhar. Mas a adulta, que vivia com os pais, solteira, sem filhos, virgem, sabia... que... e chorou.
Secando as lágrimas dos olhos, voltou a pegar na folha e no lápis, e começou a desenhar com força, com muita força, muita força, até partir o bico. Afiou o lápis e voltou a desenhar, continuava a fazer traços decididos e carregados, e partiu o bico outra vez. Afiou com raiva o lápis e cortou-se na lâmina. Sangrava, chorava e desenhava... e a folha registava tudo. Ia registando tudo o que ela ia lhe ia passando, até que ela partiu o lápis... partiu-o. O desenho ficou um presépio de almas penadas, simbolizando o trágico, o amargo e a destruição da última colheita.
A menina que desenhava bem olhou para aquilo tudo espantada. Levantou-se e correu para longe, para o adeus... com medo.
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2 comments:
As coisas que temos dentro de nós podem ser terrivelmente assustadoras.
Más, horríveis!
Ou verdadeiras e cruéis...
Podem exaltar o sistema nervoso de qualquer um, ou simplesmente daqueles que as reconhecem.
Coisa estranha, a mente humana!
a solidão de manhã é oiro
à tarde prata
à noite mata.
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