As cócegas podem fazer rir, mas também podem irritar muita gente.

"Seja bem-vindo quem vier por bem!" e "se à porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa com a gente!"

Recomendação Sonora

Sunday 9 March 2008

O reflexo

Ele não é aquilo que vê no espelho. Ele não é a pessoa que todos pensam que é. Todos pensam gostar ou saber, mas a verdade é que ninguém sabe quem ele é.

Cada vez que sai do banho, vê a nuvem no espelho, espelha reflexo embaciado. Essa núvem que dá temperatura ao corpo. Limpa o espelho. Nuvem que sai do corpo. Matérias em moléculas de ar a sair dos ombros para a casa-de-banho, fazendo-o sentir poderoso, no entanto acabado de nascer, nascido não-ele. Como é possível não nascer-se ele? Que mais poderia nascer ele, senão ele mesmo? Ele também não sabia.

Na sua análise de troca de olhares com o silêncio verificava se estava tudo em ordem. O papel prata ainda estava a cobrir as cameras ocultas nos cantos daquela divisão da casa. A porta trancada, e não se ouve ninguém a espreitar. A janela está aberta e coberta, para os satélites não conseguirem captá-lo. A respiração é quase parada... quase como se estivesse morto... lembrava-se dos dias de criança, das caras à volta dele, das sensações, das cores do passado. E a nuvem em que estava envolvido não era muito mais diferente daquela que entrava pelos seus ouvidos e se instalava na sua cabeça, nas suas memórias.

Ele tem alguém na cabeça, que não é ele. Alguém que não é ninguém. Ele não tem ninguém na cabeça. E isso só se percebe se se olhar profundamente nos olhos, nos seus olhos que alucinam depois de tomada a libertadora viagem sem sair do sítio. Ele também se olha nos olhos, também se enfrenta e procura. Não faz questão de procurar, apenas quer relacionar-se com alguém, quer envolver-se consigo mesmo, já que mais ninguém lhe resta. Olha-se no espelho que espelha a sua imagem física, alterada, mudadas as cores, as formas e os sons. O espelho fala com ele. O espelho fala-lhe dos sonhos que ele teve. O espelho sai da parede e senta-se no tampo da sanita. O jovem atira-se para o chão agarrado aos cabelos, às orelhas para calar a voz do espelho, daquela figura quadrimensional. Bate com a cabeça na pia e começa a sangrar... verde... amarelo... áspero... sangue. Sangue que cobre o corpo e o chão. O corpo nú e o chão vestido de toalhas. E deixa-se estar ali a sangrar.

O espelho levanta-se e vai tomar duche, enquanto continua a falar com ele. É nessa altura que passa um rato a subir a parede. E bichos, que não são aranhas, mas têm pernas... muitas pernas, muitos bichos, muito pretos e pequeninos, fazendo nuvens na parede. Os bichos entram e saiem do buraco de onde vêm... o espelho toma duche, esfrega-se nos seus órgãos genitais que não tem, lava a imagem do que reflecte, lavando a casa-de-banho, a casa, o Mundo todo, tudo o que reflecte, menos a pessoa que está na cabeça daquele jovem que sangra no chão.

O jovem levanta-se. Sobre para a sanita e tentar trepar a parede. Sente as suas mãos a agarrarem o liso e a fixarem-se. O liso é que se fixa ao seu corpo. Dança, rebola e corre pela parede, tecto, mas quando tenta chegar ao chão cai para cima. O jovem tenta aproximar-se do espelho, que ainda toma banho, mas não consegue, porque a sua imagem é uma violação física. O espelho ri-se e continua a falar com a voz do povo, que é a voz da razão. A razão sem nexo, sem verdade, mas que é a da maioria. A razão que é tudo menos racional, muito menos racionável. E o jovem atira-se para o chão, em desespero, esperando alcançá-lo, ao que é surpreendido quando cai no chão abrindo um buraco na testa, ao lado do outro que sangrava há mais tempo. Mas deste buraco sai um guincho, como quem está a fazer chá num pote... O jovem senta-se em cima da pia e encosta-se, com a mão na testa para tentar calar aquele grito de agonia que lhe sai da testa. Ao encostar-se, fica colado à parede. Anexado por completo, no lugar aonde o espelho estava. Os parafusos, ainda na parede, saem do estuque, rompendo os braços, as costas, as pernas, a nuca do jovem. O espelho saiu do banho, viu-se no jovem. E saiu, apagando a luz nas costas.

Ele não continua sem saber quem é, o que é... Só sabe que dói ser assim e que ninguém o ajuda.

2 comments:

Chincha said...

Futilidade: Isto dava um bom videoclip doa Tool (é a única banda que identifico com imagens tão sórdidas, tão surreais e com tanto significado).

Mais qualquer coisa: Estás preso do outro lado do vidro..?

Chincha said...

videoclip DOS Tool*