As cócegas podem fazer rir, mas também podem irritar muita gente.

"Seja bem-vindo quem vier por bem!" e "se à porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa com a gente!"

Recomendação Sonora

Thursday 29 May 2008

Quarto 101



Quando tinha cerca de 10 anos, havia um rapaz que andava pela rua de mão dada com a minha mãe, porque era assim que ela queria. Ele fugia sempre, ou tentava fugir, mas acabava sempre por ser ameaçado de castigos. Ficava sem hipóteses de escolha e acabava por ter de andar de mão dada com a sua mãe, pela cidade. Que vergonha, para ele, já com 10 anos e ainda de mão dada. O que vão dizer na escola, se encontrar alguém na rua? Mas não faz mal... Eles também andam de mão dada. Mas até isso podia ser uma coisa a seu favor, pensava: o único rapaz, na Escola inteira, que anda sem dar as mãos à mãe na rua.

Um dia, num passeio, numa tarde, num Domingo - estas coisas só acontecem nos Domingos - viu uma coisa que nunca mais se esqueceu. Uma coisa que o traumatizou de tal maneira que começou a ver o Mundo de maneira diferente. Uma coisa terrível que o assustou e o ensinou. Um homem contorcia-se no chão, espumando da boca, levantando-se e atirando-se contra as paredes dos edifícios, correndo, saltando, atirando-se ao chão, esfolando-se no chão, com as roupas rotas, correndo para a estrada na miséria de quem quer ser atropelado para acalmar a dor. Nesse dia, o menino apertou a mão da mãe com tanta força que não a largou até chegar a casa.

Mais tarde a mãe explicou-lhe que ele sofria de uma doença má, e que ele estava a pagar pelo que tinha feito mal. Ele era daqueles que sabia demais, que sabia de coisas que não é suposto acreditar. Explicou ao menino que aqueles movimentos, era o inquisidor dentro da cabeça dele, era a sua própria consciência a salvá-lo de pensar errado.

O homem, naquele momento, estava no Quarto 101.

O menino ficou mais descansado, porque a sabedoria, a explicação dos factos sempre nos deixa mais aliviados. O menino não só ficou mais descansado, como até achou que o homem merecia a sua pena. A verdade é que também não sabia que Quarto era esse, mas pessoas como ele não precisavam de saber.

Os dias passaram, a notícia espalhou-se pela escola, pelos amigos e professores, e até serviu de tema de conversa nos tempos de estudo e pesquisa. Os professores, ao contrário do que era esperado, deixavam que o menino falasse do tema nas suas aulas. Geralmente, seria castigado por estar a interromper, mas neste caso os professores orgulhavam-se do rapazinho e deixavam-no falar, cativar os outros coleguinhas para aquilo que deve ser ouvido. Um dia, à tardinha, um dos seus colegas veio a correr para a Escola, avisar os outros: tinha encontrado, no seu caminho de casa, um homem com papel prata nos olhos, ouvidos e boca. A Escola apressou-se para ver o que era. Era o mesmo homem que o rapazinho tinha visto no outro dia. Ao lado do homem havia uma placa a dizer "A prata é para a isolação, para eu não vos magoar, nem vocês a mim. Perdoem-me pelo que fiz."

O menino riu-se da situação e contou orgulhoso à mãe quando chegou a casa. O homem nunca tinha chegado a sair do Quarto 101.


A verdade é que esse homem morreu, o seu corpo apodreceu e desapareceu. O menino ficou um homem, ganhou barba. Hoje em dia, está sentado no mesmo sítio que o outro. Naquele lugar sem janelas, em que uma voz ecoa e nada nem ninguém de fora parece ver, saber para o ajudar. Aquele lugar vazio, onde a sua existência se torna a não-existência. Aonde se descobre que afinal a Sanidade é estatística. Aquele sítio, por onde todos passamos e do qual nunca saímos.


O Quarto 101.

Friday 23 May 2008

O que é a VERDADE?

Dizer a verdade passa, muitas vezes, por ter de mentir.

A verdade é um sentimento e uma memória que geralmente associamos à cor branca. A verdade é o valor com mais importância a nível histórico, para o ser Humano. Da mesma forma que o Respeito é a base de qualquer relação entre dois ou mais seres humanos, a Verdade é o registo dos factos, que vão dando pistas, insinuando o que se segue. As pessoas que seguem a vida baseando-se no valor da Verdade, são as pessoas de bem. No entanto, sabemos que muitas pessoas de bem acabam por ser consumidas/executadas, apesar da branquidão que levam no coração.

O que é que leva as pessoas a mentir? As pessoas alteram a verdade com o objectivo de, alterando os factos passados (ou presentes), dar pistas, insinuar coisas que se seguem. Por outras palavras: manipular. Por interesse próprio, em que geralmente - nem sempre é assim e passo já a explicar - mentem com o intuito de cobrir algo que fizeram e não querem que se saiba (quer porque se arrependeram ou porque é mau para a sua imagem).

No Mundo actual, tudo é político. Todos os discursos são políticos, quer num casamento, quer numa relação professor-aluno ou até quando se dá uma moeda ao mendigo na rua. Pela liberdade, especialmente a liberdade exacerbada que existe no uso (ou na ausência de) valores, temos mentira e verdade no mesmo mapa, a lutarem pelo mesmo território. Historicamente, quem se guia pela verdade pura, branca ao máximo, acaba por ser devorado. O mesmo acontece em relação aos mentirosos sem talento.

Hoje-em-dia, para se dizer uma verdade, principalmente se ela for de uma importância tal que poderá não ser aceite por todos, é bom que se domine a arte de bem-falar, ou que se seja muito calculista. Num Mundo de marketing, de imagem à primeira vista, as pessoas começam a deixar de pensar profundamente nos assuntos, perdendo as suas capacidades sensíveis para uma superfluidade que mais tarde acaba por as trair.

Para que o Verdadeiro se defenda, muitas vezes terá de se calar perante aqueles que têm mais poder, muitas vezes terá de continuar a adiar a revolução, até ao momento certo.

Se tens a Verdade, não a contes. Pensa, reflecte... Deixa que ela faça parte de ti. Deixa que tu te transformes nela. Se tiveres essa paciência, essa sabedoria e maturidade, não só te transformarás no que acreditas, como serás um símbolo, um líder para aqueles que procuram quem seguir. Até esse momento chegar, continua a mentir!

Thursday 22 May 2008

O Poço

Estás cheio de lama. Nessas 3 paredes, nessa caixa de fósforos tamanho humano em que estás, tens lama até aos tornozelos. Vês sombras lá em cima, na saída, e ouves passos, pessoas que passam. Pessoas que passam e entornam mais baldes de lama. O nível da lama continua a subir, e tu... tu sabes muito bem aonde estás.

Passa o teu melhor amigo, em quem mais confias, e atira-te lama. Pedes-lhe ajuda e é com lama que ele te responde. Lama até às canelas. De seguida vem o teu professor, o teu tutor e atira-te lama. Pedes ajuda, e recebes lama. Lama até aos joelhos. Falas-lhe das aulas que ele te deu, dos ideais que ele te passou e recebes lama. Lama para não pensares mais nisso. Passam os teus pais, e sorris. Eles sorriem-te de volta. Parecem abaixar-se, para te puxar para cima, mas vêem que tu tens lama. Se tu tens lama, por algum motivo é. E, só por isso, lama te atiram. Lama até ao umbigo, até à cintura, até cobrires os teus órgãos sexuais reprodutores, para que não possam nascer mais como tu. Lama, lama, lama...

Passam desconhecidos que ouviram falar que tu estás na lama. Desconhecidos mesmo, que não têm a certeza do teu nome, e que nunca os viste. Alguns deles são até de outros países, mas no que toca a valores, todos sabem como agir, independentemente das origens que têm. E atiram-te lama! Mais lama! Lama pelo peito, pelos ombros, pelo pescoço. Esticas o pescoço para poderes respirar. A lama é fria, pesada... Densa. E tu queres respirar, sair dali, mal te podes mexer. Mexes com as mãos, tentas sentir o teu corpo, tocar-te, e só sentes pedaços de terra na lama. Não sentes a textura do teu corpo.

O Mundo todo juntou-se para te atirar lama. Lama, mais lama, lama até ao nariz, para que não respires! Lama até aos olhos, para que deixes de ver, lama até aos ouvidos, para que deixes de ouvir, lama até à cabeça, para que deixes de pensar, para que deixes de viver. Lama até ao cimo do poço, para que ninguém te veja, para que estejas enterrado e esquecido. Lama a transbordar do poço.

Nesta altura, nadas até à superfície, levantas-te, sais do poço... e pões-te em pé. Cheio de lama, em pé, todos te olham admirados e com medo de ti. Incrédulos pelo facto de teres sobrevivido, olham-te esperando que tu tomes vingança. E é nesse impasse que vão viver os seguintes anos da vida, até que um dia acabem por falecer... à espera que seja feita justiça.

Monday 19 May 2008

Sunday 18 May 2008

Sekonda, simples e eficaz

Ora muito bem, o meu pai, quando andou sem falar comigo duas semanas seguidas na época em que eu fiz 20 anos, mandou pelo meu irmão um relógio da marca Sekonda, que está aqui a ganhar pó.

Eu sou o fulano que ficou muito contente quando recebeu o relógio do Rei Leão quando tinha 5 anos, lembro-me perfeitamente disso. Caso não me lembrasse do relógio, podia ir à caixinha de relógios estragados que eu tenho em Portugal, algures numa das caixas que está a resistir à humidade, debaixo das escadas, na casa da minha mãe. Agora não posso, mas se for lá de férias, porque nada é garantido quando se estuda e trabalha para se auto-sustentar, talvez. ("Não sou o primeiro, nem hei-de ser o último", já lá dizia quem sabe mais) Mas vá, fugindo da divagação que muito mais interessa a mim do que a vós, que me lêem (mas afinal para quem é que escrevo? para mim ou para vocês? - pergunta que distingue o tipo de artista), vou continuar com a minha história (true story). A verdade é que o meu pai estava receptivo ao comprar-me aquele relógio, porque eu o viria a partir... eventualmente. Bingo! Boa, Pai, mostraste que estavas certo! Quando fui para os balouços, rocei com o vidro do relógio do Simba na corrente do balouço e parti. Sim, aos 20 anos confesso que parti o relógio.

O meu pai fez o favor de me dizer que o relógio tinha durado apenas dois dias, ou lá o tempo que tinha passado desde que ele o comprou. Eu, que já estava triste por o ter partido, ainda consegui sentir culpado pelo que tinha acontecido, por ter desapontado o meu pai, que com a sua garrafa de Sagres, não sei se estava lixado pelo conto e quinhentos que tinha mal-gasto ou se aquilo era uma daquelas brincadeira, brincadeiras de adultos, que consiste em mandar bocas, quer os putos ouçam ou não.

Depois desse relógio, dos poucos que recebi do meu pai, muitos mais os que recebia de outras pessoas (pois ele assumidamente não confiava em mim para andar com uma peça de joalharia daquele calibre no pulso), acabava sempre por ouvir um presságio de sorte que mais tarde ou mais cedo se acabaria por concretizar. Quando não era isso, era a pergunta habitual: "chaves, telemóvel, carteira, óculos, boa!... E o teu relógio? Vais para a rua sem relógio?". Lá fazia ele lembrar-me que tinha de partir aquele aparelho. Cheguei a ter um Skin da swatch atropelado. Tinha 13 anos e o meu pai tinha estacionado mal para eu ir comprar a revista do Batatoon à papelaria. Ao entrar no carro, ouvi uma coisa a cair. Virei-me para trás e como o skin é transparente (e os meus sentidos não eram tão apurados como hoje - visto que a partir do momento em que a bolinha do piercing cai no chão da rua, consigo em fracções de segundo reconhecer a área em que caiu, e antes de parar de saltitar, já a avistei, o que me dá asas para a apanhar, algumas vezes, antes mesmo de parar por completo, ou seja: ainda em movimento), não vi nada, mas tinha a certeza que tinha ouvido algo a cair. Naquele momento de incerteza, porque não via nada no chão, mas tinha ouvido algo, o meu pai grita-me irritado pois estava mal estacionado. Entrei, arrancou.

Dias mais tarde, passei por lá e encontrei o relógio com a marca de um pneu, e mecânica quebrada. Acho que chorei, não lembro. Se fosse hoje, ria-me, mas na altura acho que chorei. Fui à procura de conserto, mas os skins não têm conserto, nem os atropelados.

Os anos foram passando, o meu pai mudou de país, e comecei a não fazer as coisas que ele me mandava fazer, nomeadamente usar relógio. Tenho o telemóvel, para que é que quero um relógio?

Anos, mais tarde, no último mês de Setembro, 2007, estava de novo a viver com o meu pai. Um daqueles dias ele perguntou-me: "não usas relógio?". Como adulto, ele percebeu que o filho dele usava o telemóvel para ver as horas. Gerações diferentes, o que é que se há-de fazer? Só quando os filhos começam a sair de casa conduzir e ter barba na cara é que os pais os parecem respeitar. Não são todos assim, eu sei, mas os meus são. Depois, discussão com o meu pai, expulsou-me de casa, blá-blá-blá fast forward, e estou a viver sozinho. Fiz anos e tenho aqui o Sekonda, um relógio simples e eficaz.

O que é que faço com isto? - pergunto-me. Troco por uns guitos na loja de penhores ou, simples e eficaz, mando o meu pai enfiá-lo no cú?

Sapatos

Calcei os meus sapatos novos. Os meus sapatos novos são novos. Novinhos! Nunca foram usados. E, apesar disso, são novos, ou seja, nunca ninguém os usou.

Saí à rua e olhei para os pés das outras pessoas e é verdade, todos estavam calçados com outro géneros de sapatos, enfim... sapatos velhos. As pessoas olhavam todas para mim. Claramente que era por causa dos meus sapatos novos. Os meus sapatos novos são espectaculares, quer pela sua cor que é espectacular, quer pela forma que têm que não é menos espectacular do que a cor. Isto, num grau de espectacularidade, é espectacularmente espectacular. Nunca se viram sapatos assim. Nem novos, nem velhos. São os sapatos de sonho de qualquer pessoa. Qualquer pessoa, seja de idade, ou nova, como os meus sapatos.

Fui para entrar no restaurante e toda a gente parou de comer, para me ver entrar. Eu entrei. Então, eu não disse que ia para entrar? Entrei mesmo, que julgam? E lá estavam, todos a olhar para mim. Olharam para todo o meu corpo, mas acabavam sempre com o olhar fixo nos meus sapatos... Isto é só para terem uma ideia do quão espectacular os meus sapatos são. O empregado de mesa, apressou-se em vir-me receber. Senti que para ele era um privilégio receber uma pessoa com tais sapatos no seu estabelecimento.

- Desculpe, mas o senhor não pode entrar.

- Porquê? Não me vai dizer que é por causa dos meus sapatos, por achar que são espectaculares demais para este restaurante. Palavra de honra que não sou elitista, apenas quero almoçar, como qualquer outra pessoa aqui.

Ele aproximou-se de mim e disse-me uma coisa ao ouvido. Fui a correr para casa e olhei-me ao espelho - era verdade: eu estava com os meus sapatos... espectaculares... calçados... apenas...

sem mais nada.
E aqui estou eu, mais uma vez sem ter ninguém que perceba o que eu escrevo. Se eu soubesse, talvez pudesse explicar...

Entre Turnos

Os tristes já foram felizes, os felizes nunca foram tristes, não pode ser, pela apatia, pelo fechar dos olhos, que não é de cansaço. Aqueles que fazem a barba todos os dias, não sabem como é tê-la grande. Não podem saber. Dão por si, nas férias, revoltados por querem voltar a trabalhar, fazer mais dinheiro, porque não estão a aproveitar, e só estão a gastar o dinheiro que pouparam todo o ano. O patrão deixa-os trabalhar até à exaustação. As férias não são para mudar de ares, mudar a vida, as férias são uma pequena pausa num ano de um trabalhador, que voltará a trabalhar logo que essas férias acabem, e fará o mesmo o ano seguinte, e no seguinte também! Vendem assim os seus sonhos, os seus objectivos ofuscados pela realidade que acreditam ser a real, e seguem, cultivando, semeando, plantando e colhendo os sonhos daqueles que não se lembram que um dia foram infelizes.

Fechamos todos os olhos, uns para dormir, outros para sonhar, outros para não ver. Muito poucos são aqueles que nunca fecham os olhos, sempre atentos ao que se passa, a eles e ao resto. Porque as mudanças acontecem. E nem por acontecerem há protestos, há revolta, há luta por um ideal: há sempre um fechar de olhos, um tempo de transição. Deixamos de ser nós quando seguimos ordens contrariados. Seguimos as ordens por causa daquele dinheiro que será por uma boa causa, seguimos por vermos mais além, por vermos mais do que aqueles que seguem connosco, mas por lhes restar apenas seguir, como opção. Mas é ilusão. Porque o sonho, é agora, não é adiar, investir, ou o que quiseres! Não é o amanhã, porque hoje foi o amanhã de ontem e nem por isso, chegaste aonde ontem imaginaste. Mas também disso já te esqueceste. É normal... Porque vives no sonho de outra pessoa. És a personagem do sonho de alguém que dorme e descansa. Daquele que fecha os olhos, e que nunca os abre, porque tu estás acordado por ele.

H2O

As brisas dançam no ar que envolve tudo o que existe. As brisas passam com os braços em tudo o que pode ser tocado. As brisas, como tudo, são feitas de água, ainda que em pouca quantidade. Como tudo, disse eu. Tudo é feito de água. O nosso planeta é água. Até nos desertos há água. E as brisas continuam a dançar por aí fora, saudando com o toque suave tudo o que é matéria.

Com um simples toque numa superfície suave, faz com que uma gota se libertasse. A gota liberta-se, assim, deixando para trás a criança que a habituou a ver o Mundo com outros olhos, que a ajudou a crescer e a libertar-se. Porque este tipo de gotas, dizem, que existem para nos fazer crescer. E voa a gota, livre de superfícies, de intenções ou preocupações, simplesmente voa, flutua. Dança com a brisa e beija as mudanças de temperatura que existem no ar. Essas mudanças que ninguém sente, que ninguém pode sentir, por ser demasiado grande, e pelo ar ser tão pouco importante.

Dança, gota, dança, dança pelo ar, pelas brisas que te indicam o caminho e que tu segues, porque nada tens a perder. Soltaste-te, gota, agora voas... Voas em liberdade. Uma liberdade que não é a ti que pertence, mas da criança que te libertou. A criança que te chorou. E é assim, salgada, que cais no chão.

Salgada.

Friday 16 May 2008

Enquanto O Verão Não Chega...

Para o Fiambrinho ir-se mentalizando!

Monday 12 May 2008

Bicho de Palco

Há de todos os tipos de espectáculo. Inevitavelmente lembramo-nos melhor dos bons espectáculos, e inevitavelmente acabamos por querer que o nosso espectáculo seja tão bom como aqueles que vimos. Nós vemos outros espectáculos, é impossível fechar os olhos. E é com eles que aprendemos, em muito, com os espectáculos de outras companhias.

Eu estou no meu espectáculo. Estou em cena, com gente a perder de vista que me assiste. Gente que pagou o seu bilhete para me ver. E eu já me esqueci de algumas falas ainda há pouco. Isto não está a correr muito bem, eu sei. Estou a tentar manter a personagem, tentar aguentar a vontade que tenho de sair antes de isto acabar. E de que me valeu mandar tudo à merda, bater três vezes na madeira e tudo o resto, se isto continua a correr mal?

Já desisti do texto, agora só espero chegar ao final do espectáculo para ir a correr para casa, ler o texto outra vez, e outra vez e outra vez! Agora eu já só improviso. O público está a murmurar, eles percebem que o texto não é assim. Mas claro que percebem, quem sou eu para tentar enganar tanta gente?

Neste momento, a luz do palco começa a ficar mais fraca e mais fraca. Faço sinais de olhos para a Regie, para que mantenham o foco em mim, que não me deixem às escuras, porque eu consigo! Eu consigo... Eu vou conseguir... Eu sempre consegui. O público está a bater palmas, não de contentamento, mas para forçar a minha saída do palco, agora escuro. Eu recuso-me a sair.

Passa algum tempo e continuo no palco à espera que me voltem a acender as luzes, enquanto corro o texto na cabeça. LIGUEM AS LUZES!! EU SEI!!! EU SEMPRE SOUBE!! Voltem... Sentem-se...

Quando dou por mim, já aconteceu: tenho o teatro só para mim. E não tenho com quem partilhar.

Bicho da Cidade

Vendo a minha liberdade Sexta-feiras das 19 às 23, Sábado das 11 às 23 com intervalo entre as 15 e as 19, e, Domingo das 11 às 16. Vendo o meu corpo para os serviços que quiserem de mim em troca de 4.60 por hora.

Vendo a minha liberdade três - às vezes quatro ou cinco - dias por semana, porque senão não como. Para quê morrer livre?

Curtas - Copy

Sunday 11 May 2008

Planando

Depois de picar as migalhas do chão pude dar-me por satisfeito. Era mais uma tarde, o céu e o Sol estavam de bom humor, tal como a Terra e as pessoas. Tudo tranquilo. Comecei por bater as asas de maneira a que o meu corpo imperialmente frágil, mas veloz levitasse. Estava muito calor, muito calor. Nada como dar um passeio pelo rio, aonde a água acaba sempre por refrescar aquilo que a Natureza aqueceu.

Planando. Segui planando rente ao rio, refrescando as minhas penas brancas, ganhando uma energia que se pode tirar de tudos os lados, mas que poucos sabem como. E, oh, eu sabia tão bem. Sabia bem demais. Percebo agora que foi bem demais.

Desta vez foi com a pacífica intenção de limpar o meu corpo do suor e, talvez, dar um novo brio a estas penas que todos pareciam respeitar. Os peixes que nadassem, que viessem à superfície, porque eu, planando, ia em Paz. Exerci esta meu momento até ficar fresco. De tal maneira fresco, que senti uns arrepios pelas asas. E, para isso, não havia nada melhor do que o Sol para me voltar a aquecer. Que saudades que vou ter do Rio fresco e do Sol quente. Bati, então, as asas com força para ganhar território aonde todos podem chegar, mas tão poucos sabem como. E, oh, eu sabia tão bem. Sabia bem demais. Percebo agora que foi bem demais.

Bati as asas com mais força para chegar ao Céu. Eu estava no Céu.

Planando. Estou planando sobre o Mundo, entre a Terra e o Céu. Entre as nuvens. Planando. Com uma dor nesta asa que parou de bater. Tento bater a outra, já que a outra tem um furo feito por uma bala que continua em direcção ao Sol, cada vez mais perto. Pergunto-me até se já lá chegou, se o atingiu. Eu sei que era esse o seu objectivo, porque eu não fiz nada de mal - apenas fui apanhado no sítio errado a fazer a coisa errada em cima das pessoas erradas. Pois... percebo agora como as pessoas é que são erradas. Se calhar é mesmo verdade, se calhar eu era o alvo. O Sol era mais um pretexto. Ou se calhar o Sol nunca foi pretexto, e eu nunca soube.

Planando. Perdendo altitude, estou a desfalecer nos céus, mas ainda estou planando.

E, quando chegar ao solo, só quero estar de asas abertas para poder abraçar a Terra.

- Para a Raquel -

Wednesday 7 May 2008

Ser ou Não Ser Português?

- Mãe, mãe!! Olha o que eu encontrei!
- Oh, meu amor, há quanto tempo já não via isto!
- O que é?
- É um diário. A mãe costumava escrever aqui.
- Escrever o quê?
- Oh, tudo o que se passava comigo. Este foi o primeiro que tive e tinha mais ou menos a tua idade.
- Que bom!! Posso ler?
- Claro, meu amor!
(ele abre)
- Mãe, não percebo. O que é que está cá escrito? Isto é português?
- A Língua mudou meu, filho. Nós mudámos.
- Então diz-me o que é que está cá escrito.
- Ora bem, aqui diz: "Dia 3 de Mar...". Desculpa, meu querido, mas a mãe também não sabe ler isto.

Tuesday 6 May 2008

Bicho da Cidade

Vendo a minha liberdade Sexta-feiras das 19 às 23, Sábado das 11 às 23 com intervalo entre as 15 e as 19, e, Domingo das 11 às 16. Vendo o meu corpo para os serviços que quiserem de mim em troca de 4.60 por hora.

Vendo a minha liberdade três - às vezes quatro ou cinco - dias por semana, porque senão não como. Para quê morrer de liberdade?

SupraHomem

Nietzsche tinha razão. Nietzsche acreditava de tal maneira no que dizia que deu em louco. Deu em louco como qualquer homem na ilha. Vivemos por consequência do devir, e jamais chegaremos à idade do Leão sem termos passado pela do menino. A maior parte de nós será sempre camelo. Nesta selva da vida, aonde os professores são os nossos maiores inimigos - não por estarem contra nós, mas por aproveitarem a nossa confiança para nos trair, para nos usar.

Com que olhos devo enfrentar essas referências do Teatro, essas pessoas cujos nomes vêm nos livros de História Teatral, essas pessoas que lutaram contra um regime ditaturial, e que agora, em democracia, em liberdade, aprisionam as mentes do futuro? Usam e abusam da fraqueza dos jovens em auto-conhecimento? Semeiam uma doença que só é curada com a morte.

Depois de desprezado o equilíbrio, a missão, o juramento que é feito pela arte, cospe-se tudo o que outros nos obrigaram a comer, cospe-se nos camarins, no backstage na luz fraca que fica depois dos aplausos. Esses senhores, esses símbolos da Nação e da Arte! da Arte, meu Deus! Da Eterna ARTE!

Segredos e segredos, pessoas, contactos e conhecimentos, e dinheiro que compra a dignidade e honra daqueles que pouco ou nada têm - tudo circula dentro de um Teatro. Esses actores de uma época Boémia, em que festejam em orgias para cobrir a ausência da vida que o tempo de ensaio lhes tira!... Para quê tanto ensaio, se percebem, mas nunca chegam a realizar as peças que transformam em espectáculo - será que é só pelo espectáculo? Mas e os cozinheiros, e os operários das fábricas, que menos instruídos e mais trabalhadores são, como poderão ser mais Puros? Porque choram realmente os actores em palco, porque se emocionam os encenadores, qual a verdadeira motivação que os faz chorar, a arte por detrás do texto ou os segredos podres que escondem durante todas as suas vidas?

O Supra Homem está a nascer. Grotowski tocou no céu e o Mundo tremeu. Já mostrou que é possível. O Supra Homem está aí, e não sou eu. É toda uma geração de marionetas como eu, que se vai movimentar contra o politicamente correcto e os tratados dos senhores. Porque o Socialismo, meus amigos, ainda não é isto! Mas a minha geração vai-vos mostrar aonde está o verdadeiro caminho para a Utopia.

E vocês, meus tutores, meus demagogos, meus pedagogos, meus traidores, descansem em Paz. Não serão odiados e muito menos amados. Serão apenas esquecidos. O que vai ficar, mais uma vez, não é o que fazem de bom ou de mau. O que vai ficar são as vossas palavras o que dizem, mas não fazem. As ideias mais uma vez vão vencer, vão superar-vos. Talvez não devessem ter mostrado ou escondido tanta fraqueza, porque há maneiras de vos fortalecer. Mas vocês não quiseram, vocês não quiseram saber. E agora o tempo vai ocupar-se de vocês.

Ei-vos, entregues ao tempo.
Ao tempo.
Ao tempo.
Ao tempo.
Ao tempo.
Para sempre...

Ao tempo!

Monday 5 May 2008

Sola

Roberto,
Estás feliz?
Vamos foder

Falo
Pouco Italiano
Mas como muita pizza

Artur,
Como vais?
Vamos foder

Bacano,
Gosto de ti.
Gosto de pizza.

Habib,
Obrigado!
Deus te abençoe
E que Deus te proteja


Quadro de Som

Curtas - Sintra

Saturday 3 May 2008

A Lição do Cookie



Quem é que não percebe a ironia disto? Há sempre alguém a dizer-nos que há coisas piores, do género "não és o primeiro, nem serás o último". E são sempre pessoas de fato, gravata... e cookies à fartazana!

Ácido

Ácido. Aquele sabor ácido. Estava dentro do pacote de papel. Tinha aquela cor vermelha, um vermelho mesmo forte. E era ácido. Era daquelas coisas que eu sabia que ia ser ácido, só pelo açúcar que a envolvia. Já sabia também que, tal era o açúcar que envolvia aquela goma, o pacote ia ficar com uns grãozinhos para eu poder apanhar com o dedo, e lamber. Mas antes disso, tinha a goma, que era a melhor parte.

Só me restava aquela, porque desta vez só comprei uma goma. Quis experimentar a goma pelo seu sabor único e individual, e não misturando-a com outros sabores, de outras cores e mais açúcar. Peguei na goma. Senti a textura dela com os meus dedos, que ficaram logo todos encaramelizados e cheios de açúcar. Daquele açúcar ácido... Abri a boca, e pus a goma mesmo no meio da língua. A saliva triplicou-se na minha boca. Mas aumentou ainda mais quando eu encostei-a ao céu da boca e chupei tudo, querendo aquela explosão de sabor... ácido... de uma só vez. Lambi os dedos e fui-me embora.

Está com sede? Aconselho uma bebida... fresquinha!

Thursday 1 May 2008

A Menina Do Laço Branco

A menina do laço branco estava deitada numa cama branca, rodeada de pessoas com máscaras - todos de branco - numa sala branca. Parecia um sonho. Ela acordou daquele sonho pesado. Acordou pelas vozes daqueles que falavam alto, falavam sobre coisas, não sabia ao certo que coisas eram essas. Começou por tentar ganhar forças para se levantar e descobrir aonde estava, viu que estava fraca demais. Mesmo assim, deu para perceber que tinha um pouco de algodão no braço. Depois tentou perceber do que conversavam as outras pessoas. Ela sentia bem as intenções fluidas e vivas do diálogo, mas estava demasiado fraca para perceber do que se tratava. A cabeça estava muito cansada. Ela... dormeceu de novo.

Voltou a acordar, a menina do laço branco, desta vez com o som ensurdecedor, uma nota aguda contínua. Ela captou tudo isto com os olhos fechados, tal era o cansaço. Aquele cansaço que ela via do qual jamais iria um dia recuperar. Mas ao mesmo tempo, isso dava-lhe paz, porque de vez em quando, sabe bem deixar a vida e fazer um retiro físico e mental - era o retiro de que ela precisava. Com o som agudo, apareceram várias pessoas que batiam as portas nas suas costas, e que corriam todas na direcção da menina do laço branco. Pelo tom das vozes, pela rapidez e precisão com que falavam, mostravam tudo menos paz. E ela que só queria que eles se entregassem, fraca como ela estava. Eles param a cabeça dela, aconchegando-a mais ao quentinho. Assim podia dormir mais uns dias, sem se preocupar. Eles estavam lá para a ajudar.

Vestiram-na com roupas menos confortáveis do que aquele pijama branco com que estava. Apesar disso, ela adaptou-se logo à roupa. Porque, para dormir, só precisamos de calor. A menina do laço branco dormia sempre profundamente, apesar de poder acompanhar com os ouvidos tudo o que se passava. Deitaram-na num sítio apertado, no qual ela sentiu que era menos confortável, apesar do sono ser forte. Já não era assim tão desconfortável, afinal valia a pena o sacrifício de andar a mudar constantemente de roupas e camas. Ela, sempre com os olhinhos cansados, percebeu que a tinham coberto com uma tampa, uma tampa de algo pesado e que não deixava ouvir o que estava de fora, talvez nem mesmo eles pudessem ouvi-la do lado de fora. O som agora é nada. Para ela ouvir o que quer que fosse, tinha de se mexer. A caixa desceu envolta num laço branco que selava o seu sono para todo o sempre. Cobriram o laço e toda a caixinha aonde estava com terra, terra e mais terra.

Passaram dias e dias. A menina continuou sempre com os olhinhos fechados, sempre a descansar, a procurar sons familiares, sons que lhe dessem um conforto, que a fizessem estar mais à vontade como no sítio de onde vinha antes. Mas era absoluto silêncio. Durante esses dias, sempre foi silêncio. Ela não percebia porquê. Ela continuava muito fraca, parecia cada vez mais, como se o sonho a estivesse a tomar. Juntou a força toda que tinha e disse muito baixinho, num volume entre o murmúrio e o silêncio, Eu ainda estou viva!...