As cócegas podem fazer rir, mas também podem irritar muita gente.

"Seja bem-vindo quem vier por bem!" e "se à porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa com a gente!"

Recomendação Sonora

Thursday 22 May 2008

O Poço

Estás cheio de lama. Nessas 3 paredes, nessa caixa de fósforos tamanho humano em que estás, tens lama até aos tornozelos. Vês sombras lá em cima, na saída, e ouves passos, pessoas que passam. Pessoas que passam e entornam mais baldes de lama. O nível da lama continua a subir, e tu... tu sabes muito bem aonde estás.

Passa o teu melhor amigo, em quem mais confias, e atira-te lama. Pedes-lhe ajuda e é com lama que ele te responde. Lama até às canelas. De seguida vem o teu professor, o teu tutor e atira-te lama. Pedes ajuda, e recebes lama. Lama até aos joelhos. Falas-lhe das aulas que ele te deu, dos ideais que ele te passou e recebes lama. Lama para não pensares mais nisso. Passam os teus pais, e sorris. Eles sorriem-te de volta. Parecem abaixar-se, para te puxar para cima, mas vêem que tu tens lama. Se tu tens lama, por algum motivo é. E, só por isso, lama te atiram. Lama até ao umbigo, até à cintura, até cobrires os teus órgãos sexuais reprodutores, para que não possam nascer mais como tu. Lama, lama, lama...

Passam desconhecidos que ouviram falar que tu estás na lama. Desconhecidos mesmo, que não têm a certeza do teu nome, e que nunca os viste. Alguns deles são até de outros países, mas no que toca a valores, todos sabem como agir, independentemente das origens que têm. E atiram-te lama! Mais lama! Lama pelo peito, pelos ombros, pelo pescoço. Esticas o pescoço para poderes respirar. A lama é fria, pesada... Densa. E tu queres respirar, sair dali, mal te podes mexer. Mexes com as mãos, tentas sentir o teu corpo, tocar-te, e só sentes pedaços de terra na lama. Não sentes a textura do teu corpo.

O Mundo todo juntou-se para te atirar lama. Lama, mais lama, lama até ao nariz, para que não respires! Lama até aos olhos, para que deixes de ver, lama até aos ouvidos, para que deixes de ouvir, lama até à cabeça, para que deixes de pensar, para que deixes de viver. Lama até ao cimo do poço, para que ninguém te veja, para que estejas enterrado e esquecido. Lama a transbordar do poço.

Nesta altura, nadas até à superfície, levantas-te, sais do poço... e pões-te em pé. Cheio de lama, em pé, todos te olham admirados e com medo de ti. Incrédulos pelo facto de teres sobrevivido, olham-te esperando que tu tomes vingança. E é nesse impasse que vão viver os seguintes anos da vida, até que um dia acabem por falecer... à espera que seja feita justiça.

3 comments:

Wahine said...

Gostei do texto.

Muito bem ;)

***

Teresa Raquel said...

Não me vingo para me vingar.

Chincha said...

Breve visão da Sarama (miudinha do The Ring)

Muito bom texto. Mesmo.

E a ironia é que se não fosse toda a lama que te atiram, tu nunca sairias do poço. Ou pelo menos seria muito mais difícil.

Funcionas como uma bola, num copo com água.
Flutuas sempre, quanto mais cheio o copo estiver, mais fácil é saíres de lá.

As pessoas, ao subirem o nível da lama dão-te a força que precisas para flutuar e sair dali, para mostrares que és mais do que te julgam.

Dos fracos não reza a história.