As cócegas podem fazer rir, mas também podem irritar muita gente.

"Seja bem-vindo quem vier por bem!" e "se à porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa com a gente!"

Recomendação Sonora

Thursday, 29 May 2008

Quarto 101



Quando tinha cerca de 10 anos, havia um rapaz que andava pela rua de mão dada com a minha mãe, porque era assim que ela queria. Ele fugia sempre, ou tentava fugir, mas acabava sempre por ser ameaçado de castigos. Ficava sem hipóteses de escolha e acabava por ter de andar de mão dada com a sua mãe, pela cidade. Que vergonha, para ele, já com 10 anos e ainda de mão dada. O que vão dizer na escola, se encontrar alguém na rua? Mas não faz mal... Eles também andam de mão dada. Mas até isso podia ser uma coisa a seu favor, pensava: o único rapaz, na Escola inteira, que anda sem dar as mãos à mãe na rua.

Um dia, num passeio, numa tarde, num Domingo - estas coisas só acontecem nos Domingos - viu uma coisa que nunca mais se esqueceu. Uma coisa que o traumatizou de tal maneira que começou a ver o Mundo de maneira diferente. Uma coisa terrível que o assustou e o ensinou. Um homem contorcia-se no chão, espumando da boca, levantando-se e atirando-se contra as paredes dos edifícios, correndo, saltando, atirando-se ao chão, esfolando-se no chão, com as roupas rotas, correndo para a estrada na miséria de quem quer ser atropelado para acalmar a dor. Nesse dia, o menino apertou a mão da mãe com tanta força que não a largou até chegar a casa.

Mais tarde a mãe explicou-lhe que ele sofria de uma doença má, e que ele estava a pagar pelo que tinha feito mal. Ele era daqueles que sabia demais, que sabia de coisas que não é suposto acreditar. Explicou ao menino que aqueles movimentos, era o inquisidor dentro da cabeça dele, era a sua própria consciência a salvá-lo de pensar errado.

O homem, naquele momento, estava no Quarto 101.

O menino ficou mais descansado, porque a sabedoria, a explicação dos factos sempre nos deixa mais aliviados. O menino não só ficou mais descansado, como até achou que o homem merecia a sua pena. A verdade é que também não sabia que Quarto era esse, mas pessoas como ele não precisavam de saber.

Os dias passaram, a notícia espalhou-se pela escola, pelos amigos e professores, e até serviu de tema de conversa nos tempos de estudo e pesquisa. Os professores, ao contrário do que era esperado, deixavam que o menino falasse do tema nas suas aulas. Geralmente, seria castigado por estar a interromper, mas neste caso os professores orgulhavam-se do rapazinho e deixavam-no falar, cativar os outros coleguinhas para aquilo que deve ser ouvido. Um dia, à tardinha, um dos seus colegas veio a correr para a Escola, avisar os outros: tinha encontrado, no seu caminho de casa, um homem com papel prata nos olhos, ouvidos e boca. A Escola apressou-se para ver o que era. Era o mesmo homem que o rapazinho tinha visto no outro dia. Ao lado do homem havia uma placa a dizer "A prata é para a isolação, para eu não vos magoar, nem vocês a mim. Perdoem-me pelo que fiz."

O menino riu-se da situação e contou orgulhoso à mãe quando chegou a casa. O homem nunca tinha chegado a sair do Quarto 101.


A verdade é que esse homem morreu, o seu corpo apodreceu e desapareceu. O menino ficou um homem, ganhou barba. Hoje em dia, está sentado no mesmo sítio que o outro. Naquele lugar sem janelas, em que uma voz ecoa e nada nem ninguém de fora parece ver, saber para o ajudar. Aquele lugar vazio, onde a sua existência se torna a não-existência. Aonde se descobre que afinal a Sanidade é estatística. Aquele sítio, por onde todos passamos e do qual nunca saímos.


O Quarto 101.

1 comment:

Teresa Raquel said...

A morte é talvez a salvação.