Pouco tempo depois, já estava à porta de casa, nas suas humildes roupas. Carregada de futuro no coração, atirou-se às ruas com o seu carrinho de compras e papéis para ir ao banco. Quis ir primeiro ao banco, para poder levantar o dinheiro necessário para ir às compras. Também estava interessada em ver se essa reforma – o que pagam como recompensa por se ser uma peça da Grande Maquinaria durante anos – pela qual lutou toda a vida já tinha caído na sua conta, ou se teria de usar as poupanças que fez ao longo dos anos. As poupanças que ganhou perdendo momentos de vida mais feliz, momentos que os outros tiveram por ser de outra condição. Mas a culpa não é dos outros; ela é que é de outra condição. No entanto, o banco estava fechado e teve de usar o dinheiro que obteve através de todas as coisas que teve de abdicar durante a vida. E apesar do sentimento de pobreza e de irrealização pessoal, foi contar as moedas e viu que tinha pouco, mas que pelo menos ainda tinha.
As lojas estavam fechadas. Fechadas para ela, de propósito, até parecia. Nunca percebemos bem os horários destas lojas, que funcionam todas de acordo com os movimentos da batuta do maestro. Lojas que dependem de alguém. E lojas de quem todos os alguéns dependem. A velhinha olhou para as montras à procura de algo para comprar. Assim, poderia saber até melhor quanto tinha de levantar no banco quando ele abrisse, e até poupava um pouco da sua eternidade escolhendo previamente aquilo que pensava comprar. Mas as lojas não vendem nada do que ela precise, e nem sequer vendem os produtos que ela procura. Porque as lojas não se podem dobrar aos caprichos dessa pequena minoria que insiste estar na margem da resistência.
A velha, então, parou para olhar à volta. Parou para ter resposta. Parou para receber o ar que tinha recebido em casa. E só havia silêncio. Não havia pessoas, nem animais, nem abandonados, nem mendigos, nem oxigénio. Um silêncio que não era paz. Um silêncio que ninguém poderá quebrar. Porque não podemos ser mais papistas que o Papa e correr contra a direcção que essa Máquina - para fazer vento e tempestades - está apontada.
Fiquei preocupado com a senhora e pousei o livro da história que estou a escrever para lhe dizer, porque é que a ocasião se relaciona com ela deste modo:
Tu és cor-de-laranja. Não és como as pessoas normais. E eu, no início da tua história, jamais disse que era de dia, que estava bom tempo, ou que o Mundo queria pedir perdão pelo que te fez a vida toda. Porque, na verdade, aquele vento que sentiste ao abrires a janela do teu quarto, só aí é que o sentes. Só... e aí. Está de noite, está frio, e nem por isso serás aceite.
E como me disse o meu avô quando lhe disse que não aguentava mais viver em Inglaterra a passar fome, isolado, com sentimentos auto-destrutivos e de auto-consumo disse à velha: “Tu hás-de conseguir. Eu fiz mais do que tu e também consegui. Não serás a primeira, nem a última a passar por isso”. Ninguém disse que com a tua reforma viria a bonança da vida. Por isso, entrega-te à tua eternidade... já que é tudo o que conquistaste... e tudo o que te resta.
5 comments:
"E eu, no início da tua história, jamais disse que era de dia, que estava bom tempo, ou que o Mundo queria pedir perdão pelo que te fez a vida toda."
Quanto custam os direitos de autor que terei de pagar por publicar este fabuloso excerto, sem o teu consentimento prévio? eheheheh
Muito bem! Adorei a escrita, adorei as analogias..adorei!
vou agora eu tomar banho com o coração carregado de futuro...percebo-te para lá das palavras, e será que tens a noção disso? Tens.
Que texto lindo.
Por momentos fiquei preocupada com o "Tu és cor-de-laranja." mas a preocupação foi-se embora (fugiu com vergonha) quando li o resto do parágrafo... e o resto do texto.
Muito bom!
O texto está mesmo muito giro. E sim... a conclusão está absolutamente fantastica. Dá sentido ao que ninguém estava a perceber até então.
Post a Comment