Thursday, 24 April 2008
As Legiões
Lá foi ele para rua, à procura de um sítio sossegado. Como se estivesse a vestir o seu escudo, elmo e lança. Apesar das chamadas não atendidas, do dinheiro no banco, dos trabalhos que tinha a fazer, ele quis ir para a rua abstrair-se, porque aquele dia era de Sol. Quis levar o seu didgeridoo e a guitarra, a ver se acontecia alguma coisa, já que o homem da loja de música lhe tirou a guitarra branca com um som característico das mãos.
Tal era a ansiedade que começou a tocar o seu instrumento comprido com som imperial ainda no caminho, enquanto andava. As pessoas que por ele passavam diziam que ele tinha aquele instrumento que chamava a chuva, e fugiam dele, atravessando para o outro passeio. E ele continuava a tocar, concentrado em tirar o som que lhe fazia lembrar o grito de Guerra das Legiões Romanas, antes de invadirem uma vila de bárbaros. As pessoas gostavam do som do instrumento, gostavam umas, outras não. Mas a maior parte nem reparava no instrumento, porque a maioria de nós tem vozes na cabeça que nos lembram o que temos de fazer. Aqueles que não têm essa voz, ocupam o tempo a fazer sons para a Terra Mãe ouvir.
Chegou finalmente ao banco, à sombra da árvore, mesmo em frente ao rio que corria na direcção contrária à que ele sempre achava que corria. Os cisnes também estavam presentes, claro, tinham de estar. Os cisnes são do rio e da princesa cisne, que era das poucas vozes que esse tal homem ainda tinha na cabeça. Começou a tocar o instrumento, agora mais concentrado, tentando ser mais preciso e, no entanto, vagueando pela escala cromática. Pouco depois, pousou-o para descansar tal não era o fôlego que tinha gasto naquelas expirações. Começou a chover. Tinha começado a chover. Teria sido por causa do instrumento? Na volta, o instrumento era mesmo para chamar a chuva, e ele não sabia. Assim, foi a correr para de baixo de uma ponte, aonde ficou a tocar, ao lado de gente que também se abrigava, ficando-o a ouvir, e a ver a chuva a transformar-se em granizo.
A chuva acalmou-se, o dia que era de Sol, ficou nublado, e ele parou de tocar a música. Voltou para casa, em marcha de prisioneiro de guerra, com correntes nas mãos e nos pés. O som tinha dado vida à História. Olha-se para trás, para as ruas cinzentas, com restos de pedrinhas que cairam do céu e pode dizer-se: as legiões passaram por aqui. E nunca ninguém saberá o que levaram, e quem levaram.
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3 comments:
Adorei! ;) já tinha saudades destes *
Escreves tão bem... Amo-te?
Só para dizer que tem um didgeridoo...
-.-'
(Gostei. Muito.)
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