As cócegas podem fazer rir, mas também podem irritar muita gente.

"Seja bem-vindo quem vier por bem!" e "se à porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa com a gente!"

Recomendação Sonora

Wednesday 28 January 2009

A Carta Que Não Vai Ser Enviada

No âmbito da disciplina Acting, entre muitos outros tipos de pesquisa de interpretação para construção de uma personagem - sendo a minha um paquistanês simpático que ainda hoje me ofereceu o jantar - escrevemos uma carta a uma pessoa. As indicações que tivemos foram: escrevê-la a alguém muito querido com quem não falamos há vários anos contando algo de exceptional que se tenha passado na última semana. Claro que escrevemos em personagem, para uma pessoa que muito provavemente nunca nasceu, mas para reenforçar a parte emocional e interior da nossa personagem. Como a carta nunca vai ser enviada ou, se eu fosse um aluno que gostasse de arquivar este género de papéis, posta num dossier, vou escrevê-la aqui. Há uma certa angústia em que escrever uma carta estando na pele de outra pessoa. Maior angústia é nunca chegar a enviá-la.


28th January 2009

Dear Ali,

Last week me and family move new house. Family bigger and Sara and me have two children. Many boxes of things to put in new house. In new house find box with pictures and address of you. Very long time no see you, since me and Sara come to England, 10 years ago. Miss you very much! Me and Sara have children to take care. I manager chicken shop and Sara cleans house and cooks and go shopping.

Family no more in Islamabad, you know, mum and dad and brother move to America 5 years ago, so no coming back anymore. Really want to see you and tell my stories of new life. Me not go to Pakistan no more. Maybe you come visit us and maybe work in chicken shop and maybe with me. Very long hours and very good money.

Women are very beautiful and clean, but very hard to marry. In truth English people not like Pakistan because think we are terrorist with bomb. We just want good life, no pain and good family. Me kids, Jim and John, born here in England and we put English names because me and Sara love them and want them to be accepted. And have better life.

Write me, I miss you!
Salamaleikum, my friend.
SHAKIL

Fiz este texto há umas horas e li-o em frente ao grupo com a minha melhor pronúncia e emoção de uma pessoa que está descalça nas brazas. Horas mais tarde, com a cabeça mais fresca e em paz a tocar guitarra, percebo que qualquer dia serei eu a escrever esta carta. E, para ser sincero, também não sei se algum dia será enviada.

Sunday 25 January 2009

Metade

Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.

Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que tristeza.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor.
Apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei...

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a platéia e a outra metade, a canção.

E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor e a outra metade... também.

Oswaldo Montenegro

Friday 23 January 2009

Dead Man Sitting

hmm

No âmbito da disciplina de Teatro Contemporâneo, resolvi adiantar-me para o próximo ano lectivo, aonde começaremos a criar o nosso próprio trabalho (espectáculos) com a supervisão de um encenador qualificado. hmm... Pensei em fazer um musical, já que é uma coisa que vende bem e que, talvez também por isso, me irrita. Resolvi começar a compor músicas, para propor ao encenador que vier, um musical, pelo grupo escrito.

Para quem não sabe, o nosso ano, apesar de ter todo misturado três cursos principais (Acting, Community e Contemporary Theatre) - os tutores acreditam que as bases são as mesmas para qualquer um dos cursos, por isso primeiro ano igual para todos - comecei a falar com alguns colegas alunos do mesmo curso que eu. Temos gente motivada e que odeia a escola, achando que este primeiro ano é basicamente uma palhaçada, apesar de estarmos a aprender imenso. Temos gente que toca instrumentos, que teve canto lírico, dança, etc... Basicamente, temos encenadores, músicos, coreógrafos e luminotécnicos, para além de actores que somos todos. Numa forma de protesto contra a escola e a tão chamada "indústria", começamos a juntar grupos antes mesmo de a escola nos enfiar numa sala e nos chamar "turma". Ninguém do Teatro Contemporâneo tem pachorra para musicais e pantomimes, apesar de sermos capazes de apreciar um trabalho de qualidade, mas gostamos todos de música e principalmente de mudança.

A música que se segue basicamente relata a história de um tipo hmm que está basicamente na cadeira eléctrica. É um rascunho, obviamente, porque a música ganha todo o seu poder cantada duas vezes, se for por um coro com umas harmonias. Os slides no final das frases dá um cheirinho do que poderá ser. hmm uh Pronto, acho que é isto. Capaz.

Ah, chama-se "Dead Man Sitting", porque há um excelente filme chamado "Dead Man Walking", que é o que se gritava nos USA quando um homem começava a pisar o seu corredor da morte, antes de ser electrocutado - há um filme com esse nome. O Musical todo terá novos ritmos, já que não serei o único instrumentista, virados para o Jazz, flamenco, blues e pop. Uma coisa que não acontece no West End. Metem-me nojo e é a partir disso que eu trabalho.


I cannot see you through your eyes
The good seeds you don't want.
Deep deep inside a thousand million miles
Of naked land to plant.

Your sweaty mind keeps on running
Your thoughtful body sits on a chair.
The bones are cracking, the skin is burning
And the wind away blows your hair.

Do you remember being old
Wearing clothes and all that money buys?
You got the profit from what you've sold
And signed a contract with Paradise.

I cannot see you through your eyes
The good seeds you don't want.
Deep deep inside a thousand million miles
Of naked land to plant.

Wednesday 21 January 2009

Sopas

Quando estás de rastos, mas vais à escola fazer as aulas, porque no sistema educativo em que te encontras dois dias sem ir à escola é chumbar o ano, e, encontras a professora que lidera o primeiro ano inteiro, aquela que te faz pensar que nunca hás-de finalmente chegar ao segundo ano, por ela não gostar de ti, tais as divergências artísticas - enfim - pensas que vais ser outra vez pisado, apesar de já estares acostumado.

Mas se ela te dá a sua sopa, para levares para casa, sabes que dentro daquela caixa há mais que comida.

Soneto 27

Tuesday 20 January 2009

Dói-me a cabeça!!!!

hmm

Se vicarious é hoje, katharsis é teatro. Amanhã o hoje passa a ontem e o teatro continua a ser teatro. Sou uma prostituta de pernas abertas aonde me deixo entregar a sentimentos que ficam cá dentro, corroendo, corroendo...

Conheci um demagogo que tem "um lugar sem portas". Entra sem ter de parar para procurar chaves. Chaves para quê, se nada há a esconder? Mas há quem entre com má vontade e destrua o que sempre lá esteve, mas que demora tanto tempo a descobrir.

Num Mundo sem amor aonde descubro que sofro de SIDA, perco a vontade de ter desejos. Qual vontade, qual destino! Eu sou o carrasco do tempo e a única coisa que amo é o nevoeiro que nas minhas memórias mergulha, transformando tudo numa nuvem de várias cores, minhas e tuas, antes de serem travadas nos pulmões de alguém que nunca antes tinha fumado.

Monday 19 January 2009

Deus é Artista

Deus é artista porque fez o homem à sua imagem. Aqueles que falam de coisas que não entendemos não são artistas. A arte é o poder da comunicação através dos sentidos. Muitos artistas morreram incompreendidos, porque não eram artistas (do seu tempo). É preciso alguma meditação e sensibilidade para se perceber muita coisa. E quem alcança o sublime virá a descobrir que não havia nada a ser descoberto. Por mais ambíguo que isto pareça, quando se apercebe que a violência - por exemplo - não leva a lado nenhum, uma pessoa torna-se pacífica.

hmm O Oceano Pacífico é o mais violento de todos, quer pelos terramotos, tempestades ou Anel de Fogo. Acho que a cor azul, apesar de tudo, fica bem no planeta Terra.

Deus é artista porque fez o homem à sua imagem. Mas para os cépticos, o Homem é que é o artista, já que fez Deus à sua imagem.

Haverá sempre mais do que um lado, e particularmente haverá um que negará o outro. Da mesma forma que há fetos que já nascem mortos. Ou as mulheres que não podem engravidar. Ou os caminhos cheios de água que nos fazem pisar a relva. Não percebo muito a ligação da última frase, mas ando pouco preocupado com o que faço.

No meio do certo e do errado, da maioria e minoria, existe uma grande dor de cabeça. Pode ser uma dor de cabeça poética que demora a passar (muitas vezes é com ela que se morre), pode ser uma dor de cabeça física que pode ser curada com comprimidos. A minha é um pouco das duas. Haverão outras, mas se as tenho, tal é a dor que já nem as sinto.

Dizem que a época de Natal é a mais difícil do ano, porque as pessoas pensam o quão injustas foram durante o ano inteiro. Mas o que é justiça senão a regulação da vontade? Começo a acreditar que a maioria do ser humano está destinado a ser mau caso não contrarie o sistema no qual está inserido.

Que dores de cabeça horríveis. Não posso ir para a escola amanhã, não posso. Estamos a dar sonetos de Shakespeare, vejam a ironia do que escolhi: conta a história de uma pessoa que se deita, mas que não consegue dormir, porque tem sempre alguém na sua mente. É difícil mantermos a mente connosco, tanta gente que a quer, para ao fim nada fazer com ela. Que dores de cabeça... Será que levaram mesmo a minha mente, que isto são réplicas dolorosas do meu oco crânio? Levaram-me o cérebro e gritaram-me ao ouvido deixando um eco que não percebo.

Compreendo bem as influências romântico-suicídas do Shakespeare. Eu próprio sinto-me como ele, daí tal escuridão nos nossos textos. Nós todos somos o Shakespeare se dermos à vida o mesmo tipo de reflexão. Vejam a coisa de outra perspectiva, pode ser que faça mais sentido: o Shakespeare era um de nós.

Um de nós, um dos nós. Dos nós das caravelas portuguesas que espalhavam a palavra pelo Mundo e uma mensagem que ainda se falta cumprir. Por mim, espero bem que nunca se cumpra, porque o Mundo não pode ser de ninguém, nem a língua. Só gostava que tivéssemos os mesmos sentimentos, que todos sentíssemos de formas idênticas, para haver mais amor, ajuda e compaixão entre todos os filhos de Deus. hmm É sempre o sentimento vicarious (lá se vai o meu português) que nos ilude com as emoções dos outros. Paga-se para termos sensações com as emoções de outros. Como se houvessem coisas que pudessem ser medidas, quanto mais quantificadas e valorizadas.

Proponho uma sociedade sem dinheiro.

Gosto das coisas que o meu sofrimento me traz, como este tipo de pensamentos filantrópicos e humanistas, com uma religiosidade de um ateu alcança com dores de cabeça. Tal como quando se peca se reza, acho que é assim que eu pago pelos meus pecados: a pensar. hmmm As dores de cabeça...

Quando pararem, daqui a dois dias, pode ser que me tenha esquecido disto tudo, que volte à minha rotina social, castradora de liberdade. Pode ser que sim. De qualquer das maneiras fica já aqui escrito o que penso de mim agora. Sei que estamos em constante movimento, mudança. Mas será que haverá assim tanta diferença entre a pessoa que escreveu este texto e a pessoa que o lê - ainda que seja a mesma em momentos diferentes da sua vida?

Se eu terminar este texto como uma pergunta, estou a deixar tudo em aberto, a iludir a uma reflexão individual de cada um - acabo por ser um demagogo, o verdadeiro professor filósofo. Se eu deixar um final claro, como quem fecha a esquadria, estou a manipular um pensamento que os mais preguiçosos podem agradecer por estar a poupar-lhes o trabalho de pensar, ou então podem discordar - e acabaria por ser um pedagogo, um professor que acabaria por ser traído, porque nada se resume a tudo o que ele diz. Mas eu não quero agradar, só quero que a dor de cabeça passe.

Deixei a comida (a primeira refeição quente que faço em quatro dias) no fogão. Está a fumegar e a dar cheiro à casa. Eu tenho o nariz entupido e vou ter de descer para a comer, comida sem sabor. Ando a apagar linhas que aqui escrevo. Sou a censura ou a sabedoria.

Aqui me entrego à subtileza deste final, trágico como não podia deixar de ser, nos olhos de um cego que a única coisa que vê é um fantasma na sua cabeça. Nunca chega a perceber se é o seu pai, a sua mulher, o seu bisavô de onde vem o seu nome, a sua filha que está para vir ou se é ele mesmo. E, apesar de assustador, ele já não tem medo. Vive em plasticina inútil e manipulada.

Sunday 18 January 2009

Post número quinhentos e cinquenta e quatro

Quantas vezes me deito cansado e só aí me surgem as ideias. Não sei se é o silêncio, se é a inactividade, ou se é o cansaço. Tinha uma professora que deitava-se sempre a ler um livro. Imaginem as ideias que ela tinha na sua leitura. Ao lado da cabeceira também tinha um bloco de notas, e escrevia aí tudo. Eu na minha cabeceira, deixa-me ver, tenho um copo vazio há uma semana, cosméticos, uma lâmpada e um candeeiro que não funcionam e umas fotocópias de técnica teatral. Não sei que tipo de notas é que ela tomava na cama, já que não escreve... Talvez ideias para as aulas. Somos todos diferentes, por isso temos todos ideias, apesar de muitas vezes não sabermos quais são as do vizinho.

Cliquei duas vezes no Enter e vim parar a este novo parágrafo. Muito sinceramente não sei o que hei-de escrever. Costumo reflectir sobre os meus textos, tendo um slogan ou outro, que geralmente surge quando estou a ler ou a tomar banho. A cor branca da banheira é uma tela de palavras na minha cabeça. Hoje acordei com dores de cabeça, há sempre uns dias da semana em que como mal e é com o corpo que pago. Descobri hoje que o dinheiro que tenho para as próximas 3 semanas nem sequer chega para pagar a renda, que já vai com uma semana de atraso. Em Inglaterra, não convém brincar com o fogo, porque esta gente atira-se a nós se ainda estamos a escolher a caixa de fósforos. Oh... com que medo vivemos. Estou a escrever de improviso, sem nenhuma linha de pensamento. Acho que é evidente, não sei. Tenho os sentimentos e objectivos bem organizados na minha cabeça, sou uma pessoa de muita reflexão, especialmente política, e na minha tentativa de improviso pode sair toda uma tese. Hmm... Esta consciência de me poder estar a gabar. Ainda não descobri como é que ser sincero pode não magoar os outros.

Estou a escrever, porque é uma das poucas oportunidades que tenho durante a semana. Ando desde sexta-feira a pensar em algo para escrever, mas acabo por censurar muito dos temas, ou porque dão uma imagem de mim que quero mudar, ou porque acho que ... qualquer coisa que agora não me lembro. Enfim, é Domingo à noite, amanhã começam as aulas e mais uma vez, vou aprisionar a mente.

- Porque é que não pões pontuação?
- E quem sou eu para pôr pontuação nos meus próprios textos?

Escrevo, porque é agora ou nunca. Depois de serem torturados durante meses, como poderão os homens sorrir quando lhe contam uma piada?

Ando a ser torturado há anos. Ando há anos nisto. As poucas vezes que tenho para sorrir vêm estabelecidas num calendário, tornando tudo tão previsível. Vejo o dia do sorriso a aproximar-se, mas desta vez não consigo pensar em nada para me rir um pouquinho. Só um pouquinho. Para que as pessoas não olhem para mim como uma mente disforme que só se lamenta e tão pouco dá confiança. Mas nós somos os miseráveis. Eu sou um miserável. Isto pode ser apenas por causa da dor de cabeça. Mas, mais uma vez, sinto o meu corpo a ser levado por alguém que não é de confiança.

Estou apaixonado pelo sofrimento. Cada chicotada é um alívio, um suspiro, porque já passou e é menos uma. Menos ou mais uma? Menos uma... A vida é em contagem decrescente. E por mais reflexões que faça, não consigo me exprimir. Ando a sentir o peso da humanidade e não estou preparado para tanto. Tanta coisa em tão pouco tempo.

Esta é a última linha que escrevo hoje e não tem nem muita, nem pouca força: está cá como eu, como se não estivesse.
Proponho uma sociedade sem dinheiro.

Andy Warhol's Exhibit



hmm

Se eu deixasse o video apenas, seria show-off.
Não curti nada da exposição. Não faz sentido pôr projecções de filmes de uma hora e quarenta. Ninguém os vai ver. O trabalho dele é interessante. Um tipo como eu acaba sempre por aprender quando vai a este tipo de eventos, mas ando a ficar aborrecido com a arte contemporânea. É tudo uma grande repetição.

O Andy é um produto assumido de uma sociedade Capitalista. Para os "closed minded" é sem dúvida uma coisa excêntrica. Para mim é um ponto inicial, mas não é a solução.

Calças de ganga a cento e quarenta libras, um cinto com a assinatura dele a cinquenta e sete... Tive de gamar um pino, um pequeno, ainda, mas, protesto.

Friday 16 January 2009

Wednesday 14 January 2009

Dias de Inverno

Há dias em que chove tanto que, se não soubermos nadar, afogamo-nos todos no grito imperceptível que nem nos diz que é amor ou ódio. Gosto de chamar a esses dias de Inverno "Dias de Inferno". As águas das chuvas, juntas com as lágrimas daqueles que causam os dilúvios, invadem as nossas ruas, os nossos sonhos e matam alguns dos nossos queridos. Há uns iluminados que com sucesso transformam-se em bóias e flutuam, e, independentemente do nível que a água atinja, flutuam para cima e para baixo. Há muitos que desesperados se agarram àqueles que têm bóia, mas estes muitas vezes rejeitam quem lhes pede ajuda com medo que se afoguem todos - é o próprio objecto cheio de ar que os rejeita.

Hoje é sem dúvida um desses dias. Cá ando, sem bóia, mas também sem me afogar. Eu nasci num mês de Março e sou um peixe - eu causo e nado no dilúvio. A pessoas como nós, é uma questão de tempo e treino até aprendermos a transformar a água em bolinhas de ar, bebendo não para saciar a sede mas para se deslocar. A nossa sede é outra. E para ser saciada, tem que se engolir muita coisa.

Um dia vamos todos encontrar alguém que pesque alguma coisa disto. Até lá, atirem água, molhem as nossas cabeças, tentem levar as nossas escamas, cuspam-nos nas guelras. Porque a memória de um peixe é dois segundos e a sua missão de vida é vencer.

Tuesday 13 January 2009

Helicóptero


O Chris liga-me a meio das férias de Natal a perguntar como estou. Digo-lhe que cá se vai andando, e ele diz-me que recebeu um helicóptero telecomandado. Podemos ter vinte anos, mas um helicóptero é um helicóptero! Pedi-lhe logo para me comprar um também, que depois dava-lhe o dinheiro. Há dois dias, apareceu-me cá em casa com o helicóptero, dizendo que era um presente, que não precisava de lhe pagar - bacano!

Vou abrir a caixa e vejo na capa o preço - 20 libras (que não é brincadeira nenhuma) - e um autocolante a dizer "no battery". E eu "Mau, hoje já não brinco." Meto-me a ler o panfleto de informações para adiantar trabalho, na esperança de encontrar alguns truques ou manobras malucas, mas nada, só notas de segurança, como se as crianças fossem de papel e o helicóptero tivesse lâminas de barbear nas hélices.

Hoje comprei as pilhas e já pude começar a brincar com ele. Nunca me ri tanto durante quinze minutos. Há meia-noite, coisa de uma hora, cá estava eu a curtir imenso com o helicóptero que mais parecia um mosquito iluminado - do género pirilampo - completamente descontrolado. Fui subindo, subindo, subindo com ele, a ver se acertava na lâmpada do quarto, cuja iluminação nunca me fatisfez e daí estar disposto a vê-la despadaçar em estilhaços numa boa causa como esta. Acertou, o helicóptero, na lâmpada e caiu desamparado no chão com uma hélice partida.

15 minutos!

Tal como pensava quando era miúdo, digo: "A culpa não foi minha. Ele é que se partiu." Hoje em dia, com as minhas noções políticas, vou ainda mais longe: "O helicóptero já vinha partido da fábrica, como todos os outros exemplares. Era apenas uma questão de tempo até ele se desmontar todo."

Já o do Chris, também tinha avariado porque apanhou um bocado do cabelo da namorada dele...

Monday 12 January 2009

Sunday 11 January 2009

Saturday 10 January 2009

Cartas de Sangue


Ao ler um conto na aula, os alunos foram propostos escrever uma carta dirigida à avó como trabalho de casa. A pequena Beatriz sentia o maior enorme pela aquela figura omissa no seu dia-a-dia, mas tão presente no seu coração. "Como poderei eu fazer justiça à minha avó neste trabalho?", pensou a pequena.

No dia seguinte, todos entregaram as suas cartas, menos a Beatriz que estava se inspirando. Explicou à professora, que nada gostou da ideia, apesar de ter nenhuma escolha senão esperar pela tal carta - se é que algum dia chegaria - e pôr a Beatriz de castigo. Quando voltou a casa, a Beatriz não mergulhou nos seus sonhos, mas nas suas memórias. E nos seus sonhos também, era inevitável.

Passado um mês de castigos, mas bom tempo para reflexão - «a vida aprende-se devagar» - , entregou num envelope débil feito à mão, claramente feito por alguém com menos de dez anos de idade, à professora que preparava um castigo final; não que fosse maior, mas uma insolência destas tinha de ser punida, não vá a criança crescer com o caule torto.

Na cabeça de Beatriz, escrever uma longa carta de amor, em seu próprio sangue, para dar força às palavras que só não têm maior valor por sermos todos pequenos em sentimentos e pensamentos, seria a maior prova de justiça. Mais que isso, era a verdadeira prova com o verdadeiro resultado. A professora achou o acto repugnante, ignorando por completo qualquer acto humanitário que dali viesse, declarando que "escrever a vermelho é de extrema falta de educação, digno de uma criança sem pais, que está a tentar desafiar a sua professora".

A avó que assistiu a isto tudo daquele sítio confortável a que são enviados os reformados do labor da vida, numa revolta que fez tremer os mortos, quase que ressuscitando para fazer justiça, para poder defender aquele pecado de amor que estava a ser chacinado e, no seu lugar, cultivadas sementes de medo. Mas a avó já estava fora do alcance da neta, tal como a neta fora do alcance dela. Não se chorou, não se gritou, nem se manifestaram os céus e infernos. Fez-se silêncio. Silêncio - apenas.

Há coisas que para os mortos são de tão fácil resolução, já que se consideram todos iguais. Em terreno dos vivos nada é certo, talvez daí o verdadeiro prazer de estar vivo. E quanto à nossa pequena Beatriz, faltava-lhe o sangue azul.

Thursday 8 January 2009

A Prenda É Quem Ta Deu

Na terra aonde eu morri
Havia um poeta que eu conheci
E que em notas de papel escrevia
Todo o seu amor traduzido para poesia

Um dia descobriu porque é que era amado
Já que pelas suas notas era elogiado.
Louco, queimou todo o seu trabalho e dinheiro
Caindo-lhe em cima o Inferno inteiro.

Ao fogo, o Mundo todo se atirara,
Vasculhando as cinzas que o poeta deixara.
Eu encontrei só uma moeda no chão
E hoje,
Tudo o que me faz feliz 'tá naquele tostão.


À princesa que dormia comigo e depois das lágrimas morreu
Um beijo deste homem que te ama e que para sempre será teu.

Levis

Servir à mesa do Mundo

Um dia conheci um empregado de mesa

Que passeava com copos numa bandeja


Ontem a casa estava cheia

E no aglomerado de gente,

Esbarrando-se neles,

Deixava gotas pingar para fora do seus copos

Matando milhões de pessoas com sede.

Wednesday 7 January 2009

O que é que faz um Português?

As lágrimas que derrama...

A fragilidade da mulher forte seduz-me e faz-me mais fraco do que ela

As coisas que se passam na cabeça de Filipa, de quarenta anos, podem assustar qualquer Messias, quer pela obscuridade, quer pela sinceridade. Há uma grande ligação, uma forte ligação entre ela e as pessoas que ela ama. Não é por as amar ou por ser recíproco, mas talvez por ela ter um sentimento de culpa que mina a sua cabeça todos os dias, faz com que ela se ligue fortemente àqueles que a tratam com carinho - como se tivesse a pedir desculpa - devolvendo esses mesmos carinhos, acabando por se apaixonar.

Aos quarenta e um ano resolve, ela, então, abrir a carta que tem desde há já algum tempo. A carta traz o resultado de umas análises de sangue. Ao que parece, tinha ela vinte e poucos anos quando engravidou. O que ela nunca contou ao seu então já marido é que ela tinha-o traído, numa noite com as amigas, noite errante, e aquela gente que hoje faz em breve dezoito anos tanto pode ser de um homem, como do outro. A verdade é que ela sabe - as mulheres têm sentidos que os homens não - perfeitamente que o filho não é do pai, ou seja, o pai não é o pai do filho, que é como quem diz: nem um nem o outro sabe que não se pertencem. Talvez por essa ansiedade desgostante que a mói, ela passou toda a sua juventude ignorando (ou a tentar) - pois as mulheres têm sentimentos que os homens não conseguem; deixo a cabo leitor do leitor escolher se me refiro ao que está entre parênteses ou ao que está fora - aquele pedaço de papel embrulhado em outro pedaço de papel, tanto um como outro pedaços de árvore já foram. A juventude de uma mulher tem um valor eterno que só a toda raça humana e a Mãe-Natureza podem lutar por perceber, já que fazem parte de uma fracção mínima desse ser: a mulher. E se a mulher é um infinito de valores e amor, o corpo da mulher na sua juventude é tudo o que há de melhor no Universo. É a Beleza da Lua fresca de prata que procura o quente do corpo do Sol de bronze.

Se uma mulher depende de um envelope fechado sem nunca o abrir, não se libertará jamais. É preciso ser aberto. Hoje, aos quarenta e um anos, abre o envelope para descobrir que perdeu a juventude. Realmente, o Pai da criança sempre foi o Pai da criança. Aquela criança que dentro dela cresceu para um dia vir a nascer com uma boca carente procurando os seus peitos; aquela criança é que nunca foi dela.

A carta ficou salgada e a mãe ficou órfã de filho e marido.

Tuesday 6 January 2009

HOMEM

HOMEM

ao Balbino


Ganha o que és

despe o sofrimento

de te veres outro


ganha o que és

despe-te do espírito de porco


ganha-te


de barro são os pés

do outro.


(poema inédito 5.I . 2009) do poeta Carlos Carranca,

in http://ccarranca.blogspot.com/2009/01/homem-ao-balbino-ganha-o-que-s-despe-o.html

Monday 5 January 2009

Luz é palavra poesia

E que probabilidade é ver-te correr
E que ansiedade por ter-te
E que fatalidade perder-te
E que cumplicidade em chorar

A imortalidade existe
Enquanto o corpo resiste
Com um lençol te cobriste
Porque gente como tu também desiste.

Luz é a palavra poesia
Poesia eras tu e eu
Num livro que ninguém lia
Mas que agora se fechou e morreu.

E A C E
É incrível como não preciso de muito tempo
Para enjoar da minha imagem no espelho.
Devo estar a transformar-me demasiadamente rápido,
Ou então já nem reajo ao tempo.
Deve estar a passar algo que me ultrapassa
E devo estar a confiar demais.

Nunca me senti tão vivo
Mas também nunca me senti tão cego.

Alguém pôs lá o espelho.
Deve ser a mesma pessoa que pôs lá o tempo.
Gostava de lhe fazer umas perguntinhas,
Mas talvez por ser um mais político,
Faltou-lhe fazer um espelho e um tempo para ele.

Nunca falei tanto,
Mas também nunca fui tão desprezado.

Sunday 4 January 2009

Saturday 3 January 2009

Sinais de luzes

Há demasiada tristeza em mim para fazer alguém feliz.
Escuto em silêncio, mas não gosto do que o meu coração me diz.
Gosto de um pouco de calor porque me faz bem
E no entanto, sou rijo e frio - se é que sou alguém.

Tento amolecer a pedra da minha pele
Despindo-me todo no papel
Para que alguém tome conta deste ser
Que tem fome, mas esquece-se de comer.

Faço-me imortal nas palavras que vão sendo lidas,
Breves e cheias, mas sem fecharem as feridas
Que só haverão de ser curadas
Quando todas as luzes forem apagadas.

Escrevo-me em rimas, talvez assim eu comece a sentir,
Mas o meu coração há muito tempo que decidiu partir.
Agora escrevo-lhe cartas e grito "regressa"
Com pedaços d'alma na mão que se desfazem de-pressa.

Choraram neve os meus olhos agitados
Quando descobriram ao que estão destinados.
Sou gente fria e com isso tenho de me conformar,
Pois nunca ninguém se amou antes de primeiro se odiar.

Nunca pensei ver-me tão gordo e tão feio,
Sempre me disseram que era belo e meigo.
A verdade é que eu nunca fui nada
E agora a minha luz que fraqueja, está prestes a ser apagada.

Manifesto Anti-Sócrates

O curta-unhas

A rotina é uma coisa que demora muitos anos a ser criada. Ela agora lembra-se de quando tinha cerca de seis anos e a mãe disse-lhe que daquele dia em diante a menina teria de cortar as suas próprias unhas. Foi um grande choque para ela, ora pois, já tinha cortado umas poucas de vezes e sabia o quão difícil era - já para não falar do tempo que demorava. Mas, por outro lado, não tinha de as cortar curtinhas, coisa que às vezes a magoava. Podia demorar o tempo que quisesse, mas as coisas seriam feitas à sua maneira. Foi das primeiras sensações que ela teve daquilo a que mais tarde vieram-lhe dizer que se chamava "independência". Mas a tal independência era muito difícil ao princípio: em vez de cortar como queria, os dedos ignoravam o que a mente mandava e acabava sempre por cortar as unhas de uma maneira horrível. Ficavam feias, ponteagudas; em vez de redondinhas arranhavam! Lá ia ela aparar, tentar cortar os bicos e acabava sempre por cortar um pouco demais. Pareciam ainda pior do que eram quando era outra pessoa a cortá-las. Demorou algum tempo até ela dominar a técnica.

Com o passar dos anos, na sua adolescência com a técnica já dominada, ela aprendeu que se tinha de cortar todas as unhas, as dos pés e as da mão esquerda - por esta ordem - seriam as primeiras a ir, já que era a direita que fazia o trabalho todo e deixá-la para o fim era mais sensato. Já que a esquerda era desajeitada de qualquer das formas, decerto que não se importaria de o fazer com o seu novo visual, já que não sentia grandes adaptações - coisa que a direita sentia. Ela era destra, caso contrário seria ao contrário, mão direita primeiro, mas ela sabia disso.

Os anos foram passando e saiu da adolescência, feita uma mulher bonita e - devo acrescentar - com umas unhas espectaculares. Foi nesta altura que conheceu um rapaz com umas unhas horríveis - ela jamais as arranjaria daquela maneira - mas como as pessoas são feitas de outras coisas para além de unhas, ela encantou-se com o rapaz e apaixonaram-se os dois profundamente. A partir desse dia, ela começou a tratar das unhas dele. As unhas de um homem são tão diferentes das de uma mulher, parecem mais fortes, quase inquebráveis. Mas ela sabia muito de unhas e conseguiu chegar a um consenso com o seu parceiro, já que na sua graça começou a cortar as unhas mais frequentemente e percebeu que as peles dos dedos podem causar infecções.

Casaram e tiveram uma criança. Os bebés quando nascem, nascem com nove meses sem cortar unhas. Ninguém no hospital tinha cortado as unhas à criança, sendo que muitos dos arranhões que tinha (criança e a própria mãe) deveram-se a minhas festinhas e carinhos de alguém que não controla a pouca força que tem e que o único instinto que tem é amar a pessoa que arranha. Pela primeira vez na vida, percebeu que cortar as unhas de um bebé é muito mais difícil de que cortar as de um homem. Um homem comunica connosco enquanto fazemos o trabalho, mas uma criança nem pára quieta nem a percebemos quando está a comunicar, pois pode estar a gostar como não, já que muito pouco exigente ela é. Aprendeu a cortar as unhas nos momentos de serenidade, quando a criança estava calma e começava a habituar-se ao facto de ter de ir à tosquia todas as quinzenas.

A criança cresceu e aos sete anos, como a sua mãe tivera feito consigo, passou a rotina à filha. Seriam menos vinte unhas para cortar lá em casa. Acompanhou o progresso da filha e ajudou-a quando foi preciso lembrando-a que às vezes é melhor cortar devagar, com calma, do que apressar acabando por se magoar. Os anos passaram-se, a filha entrou na adolescência. Começou a pintar as suas unhas com as amigas, fazendo delas coisas extravagantes, com cores variadas, de formas loucas, colando e tirando pequenos enfeites. Aquele tipo de unhas destinguia o seu grupo de amigas das outras raparigas. A mãe não gostava nada daquilo, porque ela que entendia de unhas como ninguém sabia que a filha estava a dar cabo das belas unhas que a mãe e demorou tanto tempo a formar e finalmente lhe deu, ainda dentro do útero. A filha não lhe dava ouvidos, mas o tempo é sempre mais sábio e quando saiu da adolescência, a mãe venceu, vendo a filha tornar-se numa mulher elegante - e devo acrescentar - com umas unhas que levava qualquer guitarrista à loucura. As unhas continuaram durante toda a sua vida a fazer parte do quotidiano, porque enquanto cá estivermos, elas não param de crescer, e, termos de as cortar é o preço da independência.

A mãe um dia voltou a casa, na sua rotina, e pela primeira vez em muitos anos estava sozinha em casa no final de um dia de trabalho. Ela sabia que o seu marido nunca mais voltaria. Há certas rotinas que não podem ser quebradas, simplesmente não podem, mas quando são, todas as outras pequenas rotinas, como cortar as unhas, mudam. Mais tarde, quando a sua filha entrou e viu o que se passava, acalmou a mãe - que nunca mais recuperou. Deu-lhe um banho, cozinhou para ela e dentro de duas semanas já se tinha mudado de novo lá para casa - desta vez com o namorado com quem começava a construir uma nova vida, já que a vida é mais do que cortar unhas. E a mãe nunca mais se lembrou que tinha uma filha, uma casa, um corpo com braços, com mãos, com unhas. Só se conseguia lembrar do que teve e perdeu.

A partir daí, foi a filha que começou a tratar das unhas de todos lá em casa.

Friday 2 January 2009

Porquê viver?

Porque quem vive a correr e a saltar
Encontra as coisas mais maravilhosas que o Mundo tem para dar.
Quem rebola, grita, ri e chora
Faz renascer a felicidade de outrora.

Quem come porque tem fome,
Quem descansa na esperança
De encontrar alguém que o encontre
E que passeie consigo até onde começa a ponte.

Quem ama porque mais nada sabe fazer
E quem corre sempre que lhe apetecer,
Deixa o Mundo um pouco melhor do que o encontrou,
Para os caminhantes que seguem o seu avô.

Porque quem vive a correr e a saltar
Encontra as coisas mais maravilhosas que o Mundo tem para dar.
Quem rebola, grita, ri e chora
Faz renascer a felicidade de outrora.
Porque a vida é Poesia e cantos de amor.
Porque a vida é tudo o que temos de melhor!

O baile

Coisas ganham vida à luz do Sol. Brilham e começam a mexer-se devagarinho. Com movimentos cuidadosos vão-se libertando da quietude da noite, iniciando uma descoberta daqueles corpos estranhos (seus e dos outros). Em pouco tempo, já mais à vontade, os seres começam a dançar uns com os outros, como se a vida fosse um baile, dando música ao dia e ritmo ao Mundo que lentamente gira, rodopia e enrola.

Vemos a Verdade envergonhadamente pedir a próxima dança ao Medo. Atrás deles, já em passos confiantes, se mistura a Felicidade com a Paz criando um bichinho na barriga dos outros. O Chocolate dança calmamente abraçado à Mulher que lhe morde o pescoço e conta-lhe segredos ao ouvido. A Fé mexe-se - se é que aquilo se pode chamar "dançar" - com a Pedra, que é bruta mas protectora. As Baleias dançam com os Tubarões e os Golfinhos, todos muito pequenininhos, ainda muito bebés, num aquário com uma paisagem maravilhosa que se afoga em tanta água. O Homem dança com um Pássaro cheio de penas coloridas e com asas que, se fossem estendidas, podiam aconchegar todos naquele salão.

O Perfeccionismo não tinha par, como de costume. No entanto, do outro lado da sala, também como de costume, os outros eram observados pelos olhos da Solidão. O Perfeccionismo ganhou coragem para pedir esta dança à Solidão e, esta, ganhou coragem para aceitar. Todos dançaram e todos dançam. O chão ficou colorido, como se todos se estivessem a derreter de suor naquela dança que parece não ter fim. Os músicos sujaram os seus pés com tanta cor surpresos, enquanto tocavam em direcção ao chão que parecia querer inundar o baile. Quando levantaram os olhos, viram os seus convidados completamente mudados: era como se aquila música estivesse a levar toda a gente a um ponto de confissão, de libertação, aonde todos mostravam a sua verdadeira cor. Estranhamente todos agora estavam da mesma cor. Ouviu-se uma voz que perguntava que cor era aquela. Do outro lado ouviu-se: "Esta é a cor do Amor".
Ele olhou para cima e leu "Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança...".
Mas como era por amor, não voltou atrás. Deu um passo em frente e entrou.

Foi aí que tudo começou.

Thursday 1 January 2009

Duas Almofadas Para Uma Cabeça

Na cama aonde podemos ser gordos e feios. Na cama confessamos. Na cama descansamos depois de nos termos cansado. Na cama aonde nascem os velhos e aonde morrem os bebés. Numa cama de casal, de solteiro, de hospital, de madeira, de verga entre duas árvores pendurada. Na cama aonde vivemos o sonho da vida com os olhos abertos antes de os voltarmos a fechar.

"Voltar"? Ninguém tem a certeza se é regressar ou outra coisa qualquer.

Na cama branca de porcelana aonde a água nos sobe até ao pescoço e nos baptizamos em banho de imersão. Na cama de grades para os pequenos não cairem. Na cama enorme, quentinha e protegida dos pesadelos, entre o pai e a mãe. Na cama ainda mais quente da avó. Na cama onde lemos os livros que nos massajam a cabeça até finalmente adormecermos. Na cama que nos seduz para ficar mais um bocadinho, que não vale a pena pousar o pé no quarto frio nem no Mundo lá fora. Tão distante da cama.

Voltamos sempre à cama, mais tarde ou mais cedo, no cheiro e na suavidade que a caracteriza tão diferente do resto. Voltamos à cama, porque é de lá que vimos e a mais nenhum lado temos de ir.
Por estas razões e mais outras é que sei que as pessoas só se conhecem quando são abertos os seus corpos, os seus horizontes, comunhando os seus corpos religiosos na horizontal.

A evolução enganou-se, o Homem e a Mulher não foram feitos para andar em pé. Quero ser um lagarto.

O sismo

Levavas-me o pequeno almoço à cama de manhã. Nem eu sou uma pessoa de manhãs, nem de pequeno-almoços, mas acordava para os tomar. O mesmo se passava contigo, se fosse por outra pessoa - nem mesmo por ti - deixavas-te ficar com a almofada confortando a tua cabeça. Tomávamos aquelas torradas e leite e voltávamos para a cama tomando-nos um ao outro, antes de voltar a adormecer. Quantas vezes acordámos ao pôr-do-sol, quantas! Vestíamo-nos devagar para passearmos à beira do rio, à beira da praia ou até ao jardim. Costumavas cantar para mim e eu para ti, ou pelo menos esforçava-me. Mas o frio sempre foi mais forte e obrigava-nos a voltar para casa, para a nossa casa, para o quarto, para o nosso quarto, para a cama, para a nossa, para nós. Passámos muitos dos dias da nossa juventude a fingir que aproveitavamos todas as coisas da vida, enquanto na verdade sugavamos era apenas o Amor até ao tutano. Mas que coisa mais importante, melhor na vida, senão o amor? Crescemos em sementes de amor, eu homem e tu mulher.

Hoje paguei a última renda da nossa casa, após vinte e cinco anos. Vinte e cinco anos! Vinte cinco anos é mais que uma vida; basta olhar para o nosso miúdo mais velho que já namora e qualquer dia casa. Casa e tem filhos! Oh, já imaginaste, nós avós? Qualquer dia ninguém acredita que fomos jovens. Estaremos sentados nas nossas cadeiras de verga, nos anos oitenta, balouçando ao ritmo do ponteiro dos segundos, balouçando até o tempo parar para nós.

Quase que me esqueço quem me ensinou a cozinhar, quem me obrigava a sair de casa, tal era a minha necessidade de agradar. Passeio à beira-rio, à beira-mar, pelo parque com os cisnes que eram mais teus do que meus e com os esquilos que saltitam até hoje. Há coisas que nunca vão mudar, apesar de tudo. São essas as memórias de uma vida que vai lá atrás, bem atrás nas gavetas do passado, como se tivessem sido sonhos, tudo enevoado. Mas quando vou à cozinha de manhã e sinto o cheiro das torradas do vizinho, lembro-me do tempo em que a manteiga vinha em outro tipo de pacotes, do pão fresco de antigamente, do leite quente com chocolate. Lembro-me dessas pequenas maravilhas que vinham numa bandeja fumegante com um beijinho - sempre mais um beijinho - e um "bom dia, meu amor".

Quando a cadeira continuar balouçar apesar do meu relógio ter parado, vai demorar tempo às outras pessoas para perceberem o que se está realmente a passar. Porque a cadeira continuará a balouçar, a balouçar, a balouçar, a balouçar como se fossem réplicas, réplicas e mais réplicas de um sismo catastrófico, um sismo que criaste dentro de mim e que nunca vai parar de mexer com o meu coração.

Um Ano Uma Vida Unida



E se a vida for realmente isto e apenas isto?