A rotina é uma coisa que demora muitos anos a ser criada. Ela agora lembra-se de quando tinha cerca de seis anos e a mãe disse-lhe que daquele dia em diante a menina teria de cortar as suas próprias unhas. Foi um grande choque para ela, ora pois, já tinha cortado umas poucas de vezes e sabia o quão difícil era - já para não falar do tempo que demorava. Mas, por outro lado, não tinha de as cortar curtinhas, coisa que às vezes a magoava. Podia demorar o tempo que quisesse, mas as coisas seriam feitas à sua maneira. Foi das primeiras sensações que ela teve daquilo a que mais tarde vieram-lhe dizer que se chamava "independência". Mas a tal independência era muito difícil ao princípio: em vez de cortar como queria, os dedos ignoravam o que a mente mandava e acabava sempre por cortar as unhas de uma maneira horrível. Ficavam feias, ponteagudas; em vez de redondinhas arranhavam! Lá ia ela aparar, tentar cortar os bicos e acabava sempre por cortar um pouco demais. Pareciam ainda pior do que eram quando era outra pessoa a cortá-las. Demorou algum tempo até ela dominar a técnica.
Com o passar dos anos, na sua adolescência com a técnica já dominada, ela aprendeu que se tinha de cortar todas as unhas, as dos pés e as da mão esquerda - por esta ordem - seriam as primeiras a ir, já que era a direita que fazia o trabalho todo e deixá-la para o fim era mais sensato. Já que a esquerda era desajeitada de qualquer das formas, decerto que não se importaria de o fazer com o seu novo visual, já que não sentia grandes adaptações - coisa que a direita sentia. Ela era destra, caso contrário seria ao contrário, mão direita primeiro, mas ela sabia disso.
Os anos foram passando e saiu da adolescência, feita uma mulher bonita e - devo acrescentar - com umas unhas espectaculares. Foi nesta altura que conheceu um rapaz com umas unhas horríveis - ela jamais as arranjaria daquela maneira - mas como as pessoas são feitas de outras coisas para além de unhas, ela encantou-se com o rapaz e apaixonaram-se os dois profundamente. A partir desse dia, ela começou a tratar das unhas dele. As unhas de um homem são tão diferentes das de uma mulher, parecem mais fortes, quase inquebráveis. Mas ela sabia muito de unhas e conseguiu chegar a um consenso com o seu parceiro, já que na sua graça começou a cortar as unhas mais frequentemente e percebeu que as peles dos dedos podem causar infecções.
Casaram e tiveram uma criança. Os bebés quando nascem, nascem com nove meses sem cortar unhas. Ninguém no hospital tinha cortado as unhas à criança, sendo que muitos dos arranhões que tinha (criança e a própria mãe) deveram-se a minhas festinhas e carinhos de alguém que não controla a pouca força que tem e que o único instinto que tem é amar a pessoa que arranha. Pela primeira vez na vida, percebeu que cortar as unhas de um bebé é muito mais difícil de que cortar as de um homem. Um homem comunica connosco enquanto fazemos o trabalho, mas uma criança nem pára quieta nem a percebemos quando está a comunicar, pois pode estar a gostar como não, já que muito pouco exigente ela é. Aprendeu a cortar as unhas nos momentos de serenidade, quando a criança estava calma e começava a habituar-se ao facto de ter de ir à tosquia todas as quinzenas.
A criança cresceu e aos sete anos, como a sua mãe tivera feito consigo, passou a rotina à filha. Seriam menos vinte unhas para cortar lá em casa. Acompanhou o progresso da filha e ajudou-a quando foi preciso lembrando-a que às vezes é melhor cortar devagar, com calma, do que apressar acabando por se magoar. Os anos passaram-se, a filha entrou na adolescência. Começou a pintar as suas unhas com as amigas, fazendo delas coisas extravagantes, com cores variadas, de formas loucas, colando e tirando pequenos enfeites. Aquele tipo de unhas destinguia o seu grupo de amigas das outras raparigas. A mãe não gostava nada daquilo, porque ela que entendia de unhas como ninguém sabia que a filha estava a dar cabo das belas unhas que a mãe e demorou tanto tempo a formar e finalmente lhe deu, ainda dentro do útero. A filha não lhe dava ouvidos, mas o tempo é sempre mais sábio e quando saiu da adolescência, a mãe venceu, vendo a filha tornar-se numa mulher elegante - e devo acrescentar - com umas unhas que levava qualquer guitarrista à loucura. As unhas continuaram durante toda a sua vida a fazer parte do quotidiano, porque enquanto cá estivermos, elas não param de crescer, e, termos de as cortar é o preço da independência.
A mãe um dia voltou a casa, na sua rotina, e pela primeira vez em muitos anos estava sozinha em casa no final de um dia de trabalho. Ela sabia que o seu marido nunca mais voltaria. Há certas rotinas que não podem ser quebradas, simplesmente não podem, mas quando são, todas as outras pequenas rotinas, como cortar as unhas, mudam. Mais tarde, quando a sua filha entrou e viu o que se passava, acalmou a mãe - que nunca mais recuperou. Deu-lhe um banho, cozinhou para ela e dentro de duas semanas já se tinha mudado de novo lá para casa - desta vez com o namorado com quem começava a construir uma nova vida, já que a vida é mais do que cortar unhas. E a mãe nunca mais se lembrou que tinha uma filha, uma casa, um corpo com braços, com mãos, com unhas. Só se conseguia lembrar do que teve e perdeu.
A partir daí, foi a filha que começou a tratar das unhas de todos lá em casa.
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1 comment:
Gostei muito do texto! Não pelo título ter alguma coisa a ver com o meu blog mas por essa analogia que fizeste entre um acto banal, rotineiro, um pouco bizarro que é cortar as unhas com o ciclo de vida de uma pessoa (a autonomia conquistada ao longo do crescimento, a subserviência da mulher ao homem, a emancipação da adolescência e os generation gaps entre pais e filhos até à perda de autonomia característica da velhice). É uma ideia muito criativa, original e, diga-se, bem executada.
Voltarei certamente!
Abraço
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