As cócegas podem fazer rir, mas também podem irritar muita gente.

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Recomendação Sonora

Saturday, 10 January 2009

Cartas de Sangue


Ao ler um conto na aula, os alunos foram propostos escrever uma carta dirigida à avó como trabalho de casa. A pequena Beatriz sentia o maior enorme pela aquela figura omissa no seu dia-a-dia, mas tão presente no seu coração. "Como poderei eu fazer justiça à minha avó neste trabalho?", pensou a pequena.

No dia seguinte, todos entregaram as suas cartas, menos a Beatriz que estava se inspirando. Explicou à professora, que nada gostou da ideia, apesar de ter nenhuma escolha senão esperar pela tal carta - se é que algum dia chegaria - e pôr a Beatriz de castigo. Quando voltou a casa, a Beatriz não mergulhou nos seus sonhos, mas nas suas memórias. E nos seus sonhos também, era inevitável.

Passado um mês de castigos, mas bom tempo para reflexão - «a vida aprende-se devagar» - , entregou num envelope débil feito à mão, claramente feito por alguém com menos de dez anos de idade, à professora que preparava um castigo final; não que fosse maior, mas uma insolência destas tinha de ser punida, não vá a criança crescer com o caule torto.

Na cabeça de Beatriz, escrever uma longa carta de amor, em seu próprio sangue, para dar força às palavras que só não têm maior valor por sermos todos pequenos em sentimentos e pensamentos, seria a maior prova de justiça. Mais que isso, era a verdadeira prova com o verdadeiro resultado. A professora achou o acto repugnante, ignorando por completo qualquer acto humanitário que dali viesse, declarando que "escrever a vermelho é de extrema falta de educação, digno de uma criança sem pais, que está a tentar desafiar a sua professora".

A avó que assistiu a isto tudo daquele sítio confortável a que são enviados os reformados do labor da vida, numa revolta que fez tremer os mortos, quase que ressuscitando para fazer justiça, para poder defender aquele pecado de amor que estava a ser chacinado e, no seu lugar, cultivadas sementes de medo. Mas a avó já estava fora do alcance da neta, tal como a neta fora do alcance dela. Não se chorou, não se gritou, nem se manifestaram os céus e infernos. Fez-se silêncio. Silêncio - apenas.

Há coisas que para os mortos são de tão fácil resolução, já que se consideram todos iguais. Em terreno dos vivos nada é certo, talvez daí o verdadeiro prazer de estar vivo. E quanto à nossa pequena Beatriz, faltava-lhe o sangue azul.

3 comments:

M. said...

a minha mãe chama.se beatriz. e a minha filha que terei, também.

obrigada pelas tuas histórias.


*

Anonymous said...

Houve alguem que disse:
"Há dois tipos de pessoas na vida, os actores e os espectadores"
e muitos dos espectadores ignoram o que os olhos lhes dizem.

Joana

Anonymous said...

Ser escritor é saber massajar o que há de mais ten... Ser escritor é saber massajar o que há de mais tenso em cada um de nós.

Tive de ler várias vezes a frase para a interiorizar.
Gostei da história.

beijinho

Maria Ana