Tuesday, 30 December 2008
Companhia
A paz de espírito que uma pessoa alcança a ouvir blues e a ler um livro é rara e preciosa. Não deveriam haver paredes, nem valores como o respeito que quebrassem a felicidade de uma solidão bem acompanhada. Mas há sempre alguém que não gosta, há sempre alguém insatisfeito que nos faz desligar a música por capricho - como se o bater do coração num contra-tempo fosse errado e devesse ser abulido. E quando me dizem "bom dia", estão a arriscar a própria vida, pois eu sou uma criatura nocturna, aonde as regras existem para serem quebradas e exploradas. É nestas alturas, na nossa fraqueza, na nossa exposição, que podemos explorar o quão forte os outros são, o quão persistentes conseguem eles ser. Há coisas que não devem ser feitas e, para muitas dessas coisas, poucas regras há. Há regras que se diz para serem cumpridas e essas são aquelas que eu mais gosto. Gosto das regras que me impedem, que me derrubam. Só com elas é que me poderei exercitar, só com elas é que os outros se poderão manifestar como fortes.
No jogo do gato e rato, o mais fácil é ser sempre o rato. Mais fracos são aqueles que se julgam fortes e escrevem regras. Como sei da verdadeira fraqueza por detrás daquela cara feminina, cabelos escuros e longos que me pede silêncio, fico dividido entre a minha revolta e a compaixão. A compaixão pode também ser um pretexto para o comodismo de "cumprir as regras", eu sei - e isso complica-me ainda mais. E, naquilo que nem sequer devia ser uma guerra, porque ela naturalmente já está a dormir, sinto-me derrotado, porque quero continuar, mas as paredes não me deixam. Ela pensa que não a vejo através das paredes. E tem razão. O que ela desconhece é a minha potencial capacidade de a observar durante o sono - era só eu querer. Na cabeça dela, para já, tenho o poder de o perturbar. Rescindo todos os meus poderes a um só: continuar acordado, enquanto os outros dormem, como se eu tecesse os sonhos que os outros vão vivendo de olhos fechados, imóveis, quietos, como mortos enquanto eu vivo.
Não se combate o instinto. Há guerras que não se ganham. Eu hei-de continuar a inspirar de noite e ela de dia. Bem poderá bater às minha porta as vezes que quiser. Poderá levar-me ao seu quarto e mostrar-me o quão finas as suas paredes são, tal como o seu sono. Mas esta vontade, que nem eu domino, ela não pode controlar. E ela sabe disso. Tanto sabe, que agora não consegue dormir. E fica acordada no seu remorso a tentar adormecer. Vai ela perceber que é preciso berrar para ter silêncio. Talvez ainda não, talvez seja um pouco cedo para perceber tal complexidade política, mas vamos fazê-la sentir um pouco.
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